42ª Mostra – Crítica: Sofia

42ª Mostra – Crítica: Sofia

Corpo dela, regras deles

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Em boa parte do mundo a tradição religiosa é responsável não apenas por ditar o comportamento de muitos cidadãos, mas também a legislação local. Por isso questões como aborto ou o casamento entre pessoas do mesmo sexo ainda são tabus por quase todo o planeta, e em certos países do Oriente Médio há leis rígidas para coisas que fora dali são consideradas comuns. No Marrocos, por exemplo, cenário do filme Sofia, não é permitido fazer sexo fora do casamento, sob pena de prisão.

Este contexto importante para a trama é apresentado nos letreiros iniciais. O longa da diretora Meryem Benm’Barek-Aloïsi, vencedor do prêmio de roteiro na Mostra Um Certo Olhar do último Festival de Cannes, tem como protagonista uma garota humilde da cidade de Casablanca, cuja família está prestes a fechar um negócio que garantirá estabilidade financeira para a casa.

O clima de celebração é interrompido quando Sofia (Maha Alemi) passa a sentir fortes dores. Sua prima Lena (Sarah Perles) é a única que percebe o que está acontecendo: a jovem está grávida.

A pressão do entorno já agia sob Sofia mesmo antes do momento no qual o filme começa. Ela vivera até ali a chamada “negação da gravidez”, um fenômeno raro, embora real, no qual mães ignoram tão fortemente a gestação que muitos dos sintomas, como o crescimento da barriga, acabam não se materializando. Sua família não fazia ideia da situação, assim como Omar (Hamza Khafif), o suposto pai do bebê – a gravidez é a prova irrefutável de um crime, já que ambos são solteiros.

A partir daí, Benm’Barek-Aloïsi acompanha um verdadeiro périplo, no qual burocracia (clínicas que não querem realizar o parto) e falta de apoio (a ponto da mãe cogitar largar a criança recém-nascida numa caixa de papelão) se entrelaçam. Para evitar a cadeia, Sofia e o rapaz devem se casar, levando ao extremo a expressão “matrimônio por conveniência”.

A protagonista tem Lena como principal interlocutora. Ambas representam dois pólos da juventude de seu país. A primeira é não apenas ligada às tradições, mas principalmente intimidada por elas. O medo a deixa acuada e dita suas ações. Já sua prima, criada sob influência da cultura francesa, veste-se e porta-se de outro jeito e não hesita em fazer sua opinião ser ouvida, mesmo em momentos banais, como na hora em que pede a um garçom para refazer seu suco de laranja.

Lena pode até se ver como uma salvadora, mas a diretora/roteirista não compartilha desta opinião, já que muitos dos esforços da personagem se provam inúteis. Trata-se de uma “estrangeira” tentando fazer sua mentalidade prevalecer num local que não é o seu, muitas vezes receita para um estrago ainda maior.

Seguindo a cartilha de uma estética crua, com planos próximos aos rostos das protagonistas e de seus sofrimentos, Sofia é um filme de atritos. Coloca o espectador diante de uma realidade pouco conhecida, e joga para ele a responsabilidade de tirar suas próprias conclusões. Realizado por uma cineasta estreante e com um enredo carregado quase completamente por personagens femininas, é o retrato de um mundo onde juízes têm mais direito sobre os corpos das mulheres do que elas próprias.

Diego Olivares

Crítico de cinema, roteirista e diretor. Pós-graduado em Jornalismo Cultural. Além do Cinematecando, é colunista do Yahoo! Brasil