Análise: ‘Vingadores: Ultimato’ faz cinema com a lógica das redes sociais

Análise: ‘Vingadores: Ultimato’ faz cinema com a lógica das redes sociais
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Vingadores: Ultimato já é um marco histórico do cinema deste século XXI. Não falo isso pelos recordes de bilheteria que acumula desde sua estreia, e nem apenas pelo fato de ser a conclusão de um ciclo iniciado pela Marvel onze anos antes, quando o primeiro Homem de Ferro apresentou ao mundo a ideia de um universo interconectado por múltiplas aparições de personagens, easter eggs e cenas pós-créditos.

Mais do que o filme em si, é interessante a reflexão sobre o que essa superprodução significa como o auge de uma cultura geek cujo público cresceu acompanhando cada lançamento nos cinemas e declamando seu amor pelos heróis nas novas redes sociais que foram surgindo com o passar dos anos.

Quando Robert Downey Jr. estreou nas telas como Tony Stark, plataformas como Twitter e Facebook ainda engatinhavam, estando longe do poder de alcance que têm hoje. Na década que se seguiu desde então, as ferramentas viraram parte estratégica de qualquer um que tenha uma ideia para vender. A Marvel não demorou para perceber que tinha nas mãos o produto perfeito para gerar reações apaixonadas na web, e teve como mérito encontrar o equilíbrio perfeito para agradar tanto os fãs das histórias em quadrinhos quanto espectadores que nunca tiveram contato com aqueles personagens – algo que a rival DC ainda patina para encontrar.

Assim, o tal Universo Cinematográfico da Marvel foi montando sua própria bolha. Em 2012, assistir ao primeiro Vingadores sem ter visto as aventuras solo de cada um daqueles protagonistas tornava a experiência um pouco mais difícil de acompanhar. Sete anos e quinze filmes depois, entrar numa sala para conferir Ultimato tendo deixado passar alguns dos lançamentos anteriores é igual entrar num grupo de whatsapp formado por amigos que não estudam na mesma faculdade que você: ainda é possível se divertir, mas muitas piadas internas irão soar incompreensíveis.

Outra característica marcante do comportamento das redes que o filme reproduz é a tentativa de pegar carona em pautas sociais do momento, ainda que a prática não exatamente comprove o discurso. Há um breve momento em que um semi-figurante (interpretado por Joe Russo, um dos diretores) conta ter interesse romântico em outro homem. É o suficiente para pipocaram notícias sobre este ser o “primeiro personagem gay do universo Marvel”, mesmo que sua participação dure menos de dois minutos.

Mais adiante, já na batalha final contra Thanos, as heroínas femininas se reúnem para colocar-se em posição de combate. O instante fez as fãs vibrarem, mesmo que o impacto na trama seja nulo: elas saem correndo para a briga e tudo continua acontecendo da mesma forma. Vale lembrar que, mesmo presente praticamente desde o início da franquia, a Viúva Negra (Scarlett Johansson) ainda não teve sua história contada num filme de origem e que, dos vinte e dois filmes deste primeiro ciclo da Marvel, apenas um teve direção de uma mulher, Anna Boden em Capitã Marvel, ainda assim dividindo a função com Ryan Fleck.

Além disso, fica difícil falar em diversidade quando um filme chega a ocupar 80% das salas de um país, como aconteceu no Brasil, diminuindo o já reduzido espaço para outros tipos de cinema. É uma prática semelhante ao que faz o Facebook: quanto mais você interage com algo que lhe agrada, mais daquele tipo de conteúdo é mostrado. Pode fazer sentido no mundo dos negócios. Quando o que está em jogo é uma atividade artística (ou o cinema ser a “sétima arte” virou apenas um lugar-comum vazio?), torna-se algo perigoso.

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A estreia de Vingadores: Ultimato também fez com que a “spoilerfobia” chegasse a outro nível. Primeiro, como marketing. Os diretores chegaram a divulgar uma carta aberta ao público pedindo para que os fãs não revelassem nada sobre a trama quando saíssem das sessões. Se não é uma estratégia nova (Hitchcock pediu a mesma coisa, 60 anos atrás, nas peças de divulgação de Psicose.), ganha outra dimensão na era das redes, tendo levado pessoas a até mesmo deletarem suas contas para evitar ler detalhes antes de ver o filme. O medo de ficar para trás na discussão serviu de grande impulso para o longa ter alcançado a marca de maior bilheteria em um final de semana de estreia em todos os tempos.

Até aí, faz parte do jogo. Mas as coisas passaram dos limites com as notícias do homem que foi espancado num cinema de Hong Kong após contar o final para uma fila de pessoas que aguardava para entrar na sala de exibição ou a confusão que se tornou uma sessão em São Gonçalo, no Rio de Janeiro, por motivo parecido. Sem contar na dificuldade que é para alguém conseguir publicar uma crítica do filme sem discorrer a respeito da trama, o que acaba favorecendo a uma discussão apenas superficial sobre a obra.

Impedidos de se aprofundar no enredo, para não serem acusados de dar spoiler, e na tentativa de se fazerem notar entre as milhares de publicações sobre o assunto, muitos textos apelam para as chamadas exageradas. Então, no mesmo dia foi possível ler que “Vingadores: Ultimato é o filme mais chato de 2019”, mas também que é o “MELHOR [assim mesmo, em caixa alta] filme da Marvel Studios”. Como quase tudo hoje em dia, é a tal da polarização. E polarizar sempre dá clique.

Quando um acontecimento do tamanho da estreia desse filme surge, é uma boa oportunidade de pensar no que ele revela sobre o status da cultura pop contemporânea. Focado no público que conquistou e interessado em dar a ele um espetáculo que o satisfaça, Vingadores: Ultimato é o ponto culminante de uma planejada campanha de adoração que se retroalimenta. E pregar para convertidos nunca foi tão lucrativo.

Diego Olivares

Crítico de cinema, roteirista e diretor. Pós-graduado em Jornalismo Cultural. Além do Cinematecando, é colunista do Yahoo! Brasil