Crítica: A Outra História do Mundo

Crítica: A Outra História do Mundo

Coprodução Uruguai-Brasil-Argentina enfrenta fantasma da ditadura latina de forma lúdica

Imagem do filme 'A Outra História do Mundo'

Um conto singelo de resistência, levado pelo talento de Cesar Troncoso (de O Banheiro do Papa e de filmes nacionais como O Vendedor de Sonhos). Assim pode ser resumida A Outra História do Mundo, comédia dramática coproduzida por Uruguai, Brasil e Argentina, que usa como cenário o cotidiano de um pequeno vilarejo para refletir sobre o período ditatorial do país e as pequenas formas de enfrentamento possíveis a seus humildes cidadãos.

Ora sequestrando anões de jardim, ora criando parábolas sobre o perigo da tirania, o protagonista Gregorio Esnal (personagem de Troncoso) é um herói que tem na irreverência sua melhor arma. Num continente que nunca se livrou completamente da sombra autoritária, suas lições continuam atuais, seja para falar sobre a Idade da Pedra ou o século XXI.

A trama se passa na pequena Mosquitos, interior uruguaio. Os militares ainda comandam o país e as poucas opções de lazer se reduzem ainda mais com a instituição de um toque de recolher, proibindo os bares de continuarem abertos após as 22h. Para boêmios como Esnal e seu fiel companheiro Milo Striga (Roberto Suárez) a gota d’água é a chegada de um novo coronel (Néstor Guzzini) à cidade.

Cansados de estar sob vigilância constante, a dupla arma um travessura, que acaba saindo pela culatra. Milo é levado pelas autoridades a um local não revelado, desaparecendo sem deixar vestígios, deixando a esposa e duas filhas, enquanto Esnal é consumido pela culpa, mal conseguindo sair de casa.

Se nesta primeira metade o tom pesado prevalece, sublinhado pelas expressões desanimadas de seus personagens, habitantes de um local remoto e esquecido, a segunda parte renova o fôlego do filme dirigido por Guillermo Casanova. A história ganha movimento conforme seu protagonista volta às ruas, com uma ideia na cabeça: quer dar aulas de história no centro comunitário local.

Antes, porém, ele precisa que a ideia seja aprovada pelo coronel, numa sucessão de cenas que resumem humor e mensagem de A Outra História do Mundo. Primeiro, Esnal devolve os anões que roubou do quintal do militar, sem dizer que foi ele o culpado. Os bonecos reaparecem misteriosamente pendurados nas árvores do cemitério, como se tivessem sido enforcados. Um pouco mais adiante, quando conta para o autoritário líder sobre seus planos de ensinar, a permissão vem com um aviso: não poderá falar sobre nenhum evento posterior ao descobrimento da América. Afinal, o poder sabe que manter a população sem cultura é o atalho para evitar questionamentos.

Esnal não se faz de rogado e começa o curso. Conta causos de séculos passados, sempre dando um jeito de colocar a memória do amigo desaparecido no meio, instigando a comunidade com histórias sobre força e revoltas. O longa acompanha estes devaneios criativos, utilizando animações e colagens como extensões das projeções mostradas pelo professor. Arte e imaginação também são capazes de gerar mobilização social, como mostra o clímax, não à toa situado numa festa de Carnaval.

“Uma nova mudança em breve vai acontecer / E o que há algum tempo era novo jovem /Hoje é antigo, e precisamos todos rejuvenescer”, diz Belchior nos versos de ‘Velha Roupa Colorida’, música dos anos 70 incluída em um dos pontos-chave do longa. É uma promessa que ainda não foi cumprida totalmente, mas que produções como esta fazem o trabalho importante de relembrar.

Diego Olivares

Crítico de cinema, roteirista e diretor. Pós-graduado em Jornalismo Cultural. Além do Cinematecando, é colunista do Yahoo! Brasil