Crítica: Nico, 1988

Crítica: Nico, 1988

Longa biográfico sobre os últimos anos de vida de Christa Päffgen retrata a angústia de modo ora poético, ora bruto

Imagem do filme 'Nico, 1988'

Pode-se dizer, sem exageros, que Nico fez a trilha sonora de sua vida – ou melhor: que dialogava com os seus últimos anos de vida. Todavia, se a musa de Andy Warhol e uma das vozes que ajudou a popularizar o Velvet Underground encontrava refúgio na música, ela estava em constante fuga de si mesma e de tudo o que o show business representava. Os últimos dois anos de Christa Päffgen, um dos ícones da contracultura nos anos 1960, compõem o argumento de Nico, 1988.

Dirigido pela italiana Susanna Nicchiarelli, o longa mergulha de corpo e alma na trajetória de Nico, interpretada por Trine Dyrholm, entre 1986 e 1988, meses antes de sua morte, em julho daquele ano. Logo de cara, somos apresentados à persona instável e profunda da estrela decadente, que tem consciência plena de seu potencial e de seu significado para a música, e também de como sua vida poderia ter sido diferente.

Este aspecto evidencia as características mais marcantes de sua personalidade. O fato de tocar em locais sujos, no sentido underground do termo, ao cair na estrada em tour pela Europa com músicos cujos desempenhos foram comprometidos pelo abuso de drogas, a fazem oscilar entre a frustração e a fúria – contraditoriamente, a fuga é por meio do vício em heroína e álcool.

Aliás, os vícios de Nico marcam também a tentativa de fuga da verve do show business, universo no qual a beleza e a obrigatoriedade de atender às expectativas midiáticas e de beleza representavam uma prisão para ela. Esse ponto é exemplificado na cena em que a protagonista fala sobre seu prazer em comer, pois ela fora privada disso na infância, em plena Alemanha na II Guerra, e durante a carreira de modelo. E, mesmo que se mostre insubordinada, Päffgen se vê submetida às decisões tomadas por Richard (John Gordon Sinclair), que toma decisões para satisfazer os gostos da estrela – contudo, não é possível identificar se isso acontece por causa de uma paixão platônica, ou se ele é apenas condescendente com a cantora.

Ainda, outra ferida aberta é a relação de Nico com o filho, Ari (Sandor Fundek), pautada pelo misto de amor com culpa pela distância entre eles – isso sem contar que ela tem convicção na paternidade do ator francês Alain Delon, que não o assumiu. Era como, se de alguma maneira, reatar os laços afetivos com Arie fosse, ao mesmo tempo, uma tentativa de autorreconexão e de ruptura com o mundo que a oprimia mental e emocionalmente.

O filme tem mescla de linguagens coesa e que ajuda na narrativa. Em alguns momentos parece ser um road movie e em outros, um videoclipe. De quebra, a trama une de modo harmônico sequências frenéticas com forte teor psicológico, que renderam cenas antológicas, como a cena em que Nico entra em transe ao cantar “My Heart is Empty” durante show em Praga, na então Tchecoslováquia. Enquanto a tensão rola solta nos bastidores, ela parecia tentar expulsar os próprios demônios e encontrar algo que preenchesse o seu coração vazio de esperança em dias melhores.

Em resumo, Nico, 1988 proporciona imersão nos últimos momentos da eterna estrela da contracultura musical e nos faz mergulhar num mar revolto de emoções, sentimentos e pensamentos pulsantes, em grande parte graças à atuação intensa de Dyrholm.

Amauri Eugênio Jr

Jornalista. Cinéfilo, crítico cultural wannabe e interessado por assuntos relativos a esportes, direitos humanos e minorias. Foi redator de cinema do Yahoo por um ano.