Entrevista com Ettiene Comar, roteirista do filme Meu Rei
O filme Meu Rei estreia em circuito nacional nesta quinta-feira (22), e abaixo você confere uma entrevista exclusiva com o roteirista do filme, Ettiene Comar.
Em Meu Rei, depois de um grave ferimento no joelho, Marie Antoinette Jézéquel, conhecida como Tony, se muda para o sudoeste da França para realizar um longo tratamento capaz de ajudá-la a caminhar normalmente. Mas esta não é a sua maior dor: ela ainda amarga um relacionamento infeliz com Georgio Milevski, um homem violento e possessivo com quem tem um filho. Aos poucos Tony consegue se recompor e aprende a se defender de seu marido.
Leia nossa crítica aqui.
Este é o primeiro filme que você faz com Maïwenn.
Maïwenn queria um ponto de vista masculino para contar a história, que é construída a partir de um ponto de vista dual. Nós não nos conhecíamos antes. Fomos apresentados pos Alain Attal, produtor dela. Ela gostou dos filmes de Xavier Beauvois (cujos dois últimos eu escrevi) e eu gostava dos dela. Nós rapidamente encontramos alguns pontos em comum e algumas diferenças estimulantes.
MEU REI é muito diferente dos filmes que ela dirigiu anteriormente e também muito diferente dos que você escreveu.
É verdade, isso tornou o desafio ainda maior.
Ela tinha uma ideia precisa do filme que queria desde o início?
Ela tinha a base do filme e queria que eu a ajudasse a criar a narrativa. Os personagens não estavam totalmente definidos.
Você considerou imediatamente uma construção através de flashbacks?
Sim. Foi uma construção simples – uma dinâmica dupla que nos permitiu criar a distância que queríamos – ela nos deu uma grande liberdade para desenvolver a storyline de como Tony e Georgio se conheceram, e de como isso evoluiu, para depois voltarmos, quando quiséssemos, para a convalescência de Tony. Dado que a história se passa num período de muitos anos, isso nos deu passe livre para transitarmos através da linha do tempo.
É uma estrutura narrativa nova no universo de Maïwenn.
Sim, e eu acho que funciona perfeitamente com o assunto. Fala sobre observação e introspecção e, num longo prazo, sobre uma relação entre duas pessoas.
O que o atraiu no assunto, que é bem diferente dos seus temas usuais?
A intensidade da relação em termos de paixão e natureza destrutiva. Eu gosto da ideia de vários pontos de vista sobre a felicidade e o drama. São experiências emocionais muito íntimas que todos entendem em maior ou menor grau, e que eu não tinha tido a chance de explorar até então.
No início do filme, Tony é uma personagem serena que parece ser bem equilibrada. Isso faz com que a relação em que ela entra pareça ainda mais arrebatadora.
As primeiras cenas do encontro deles trazem todos os elementos que você encontra nas comédias românticas norte-americanas: ela é advogada, ele é rico e bonito, eles vão aos lugares da moda. Isso fornece o pano de fundo perfeito para um caso de amor e uma narrativa “bem-sucedidos”. Maïwenn e eu depois procuramos destruir esses símbolos para mostrar a dor e o drama escondidos debaixo da superfície. Havia algo de muito sombrio em levantar o véu. Eu fui atraído por essa ambivalência, e o título do filme, MEU REI, faz um resumo perfeito.
Pode-se quase considerar Georgio como um desses pervertidos narcisistas dos quais vivemos ouvindo falar hoje em dia.
Maïwenn e eu estávamos inclinados a deixar espaço para dúvida quanto à personalidade dele. Tinha que haver algo de sombrio nele. Mesmo que gradualmente você descubra mais coisas sobre ele que ajudam a melhor entendê-lo, nem Tony nem a plateia devem compreender totalmente quem ele é. O filme explora a pergunta eterna: quem é a pessoa que nós amamos? E essa característica é desenvolvida depois. Georgio é de fato uma daquelas pessoas que tiram todo seu poder de seus relacionamentos. Ele é quase um mentiroso compulsivo. No entanto, embora mentiroso, nós não nos iludimos com as pessoas com quem nos envolvemos, em maior ou menor grau?
Como você e Maïwenn construíram os personagens?
A dupla perspectiva masculina e feminina nos fez constantemente retrabalhar nossas opiniões. Como poderíamos impedir Georgio de passar por um desgraçado e fazê-lo potencialmente charmoso a ponto de despertar empatia? Por outro lado, que forças daríamos a Tony para que ela não fosse apenas um cordeirinho indo para o abate? Na verdade, nós não concordamos com as reações que eles possam ter tido: “Não! Ele (ou ela) nunca faria isso!” Durante o processo de escrita, eu só tive uma preocupação: nós conseguiríamos fazer essa mulher resistir tanto tempo na história? Acho que esses medos provaram ser infundados. Tony se segura à ideia de ter uma família. Nós sentimos que esse é um dos desejos que a movem, fazendo com que, depois de cada revolução, ela cedesse um pouco mais. “Você não pode desistir. Claro que casais que estão juntos há muito tempo passam por coisas terríveis”, ela diz ao irmão para justificar sua cegueira. Pode não ser mais a norma, mas é uma desculpa na qual alguns casais se agarram quando as coisas estão ruins. Eles conseguem justificar o injustificável. É uma espiral psicológica que leva o amor à dependência e à submissão.
O personagem do irmão é um papel muito importante.
A desaprovação que o personagem interpretado por Louis Garrel tem por Georgio era mais ambígua no roteiro. Você podia sentir uma ponta de ciúme. A maturidade de Louis, sua ironia e seu humor deram uma mudança de tom. No filme, ele está totalmente ciente de que a relação de Tony não é normal.
Sua relação com Isild Le Besco é uma lufada de ar fresco.
A relação deles funciona. Eles são um casal calmo, o que contrasta totalmente com a relação louca de Tony e Georgio.
É só passando tempo com o grupo de jovens do centro de educação física que ela consegue superar o sofrimento.
A reconstrução de Tony segue um caminho físico. Reclamando a posse de seu corpo, ela assume controle de sua identidade e é liberada. Quando ela está com os jovens, está num meio social muito diferente do meio privilegiado a que estava acostumada. São jovens muito bonitos que compartilham de um entusiasmo contagiante pela vida. Eles gradualmente a levam de volta para a vida com uma delicadeza verdadeira.
Não há um ponto em que percamos um dos protagonistas de vista na história de seu relacionamento.
Foi uma decisão calculada quando estávamos escrevendo. Nós estamos constantemente com eles, só lidamos com o seu relacionamento e raras vezes permitimos que a opinião de um personagem secundário fosse expressa. Cada cena tem momentos emocionalmente poderosos, quer sejam destrutivos ou quer deem significado à neurose que consome sua relação. Nós nunca saímos de sua intimidade. É o que, na minha opinião, torna o filme tão poderoso e único.
MEU REI é seu primeiro filme escrito em colaboração com uma mulher. Isso mudou as coisas?
A forma como Maïwenn e eu trabalhamos juntos foi nova para mim. Nós compomos o filme como um dueto, sem aquelas interrupções de um ou dois meses em que você deixa o texto descansar. Ela escrevia cenas, eu reescrevia depois; eu escrevia cenas, ela reescrevia depois. Maïwenn tem os pensamentos muito rápidos; ela é instintiva. Ela com frequência precisa de outra pessoa para ouvir e analisar o que ela está pensando para esclarecer onde está chegando de verdade. Foi uma relação de trabalho muito frutífera.
Você tinha algum outro trabalho em mente enquanto estava escrevendo?
Maïwenn me pediu para reler “Full of Life”, de John Fante, que conta a história de um homem que perde o eixo quando a mulher fica grávida. Quanto a filmes com essa temática, NÓS NÃO ENVELHECEREMOS JUNTOS, de Maurice Pialat, e CENAS DE UM CASAMENTO foram clássicos para mim. Mas, no fim, eu esqueci de tudo enquanto estava escrevendo, e não pensei mais nessas obras ao assistir ao filme.