Crítica: Ninguém Tá Olhando (1ª Temporada)

Crítica: Ninguém Tá Olhando (1ª Temporada)

Anjos tortos que vivem na sombra

Uma série sobre anjos agnósticos. Assim pode ser definida, pelo menos pela primeira temporada, Ninguém Tá Olhando, produção nacional original da Netflix. Apesar de ter como protagonistas criaturas conhecidas por serem celestiais, a atração foge das representações tradicionais de céu e inferno e chega até mesmo a questionar a existência de uma força superior que esteja regendo os acontecimentos terrenos.

Criada pelo trio Daniel Rezende (responsável por Bingo – O Rei das Manhãs e Turma da Mônica – Laços e indicado ao Oscar pela montagem de Cidade de Deus), Carolina Markowicz (do premiado curta O Órfão) e Teodoro Poppovic (vindo do Comédia MTV e do longa TOC – Transtornada Obsessiva Compulsiva, com Tatá Werneck), a série humaniza a figura dos anjos da guarda e provoca o público de adolescentes e jovens adultos a pensar duas vezes antes de seguir uma ordem sem pestanejar.

“Tem gente que segue regras, e tem gente que muda o mundo”, é um dos lemas rapidamente aprendidos por Uli (Victor Lamoglia), anjo novato que chega a seu distrito de trabalho, que mais parece uma repartição pública, sem entender a lógica das leis impostas a eles. Quando o protagonista passa a interferir diretamente na vida dos humanos e se aproxima de Miriam (Kéfera Buchmann), uma moça generosa e em crise existencial, seu jeito iconoclasta começa a trazer consequências cada vez mais sérias.

Apostando na vocação pop, Ninguém Tá Olhando dispara diversas referências, grande parte delas com pitadas de auto-ironia e metalinguagem. Cidade dos Anjos, filme que guarda semelhanças óbvias com a trama (embora as duas obras se provem bastande diferentes em tom), é o maior alvo. Mas também sobra para Kéfera, que num dos diálogos torce o nariz quando Uli sugere que sua personagem vire youtuber. “Vê se eu tenho cara de youtuber?”, é a fala da atriz, cujo canal na plataforma tem quase 11 milhões de inscritos.

O elenco, que ainda conta com nomes fortes do humor brasileiro como Júlia Rabello, Augusto Madeira e Leandro Ramos (repetindo os trejeitos de seu Julinho da Van, do Choque de Cultura), está entrosado e parece se divertir em cena. Na parte final da temporada, quando a carga dramática fica mais pesada, Júlia tem a chance de mostrar que também dá conta de sequências mais sérias com competência. Outra revelação do Porta dos Fundos, Thati Lopes faz uma participação hilária num dos episódios, como uma suposta guru que entra em parafuso ao saber que os anjos são bem diferentes do que dizia a seus seguidores.

Por falar nisso, outra ideia que a série joga por terra é a de que os anjos não teriam sexo. Quando soltos das amarras dessa convenção, os anjos de Ninguém Tá Olhando beijam na boca, têm desejos, transam e revelam uma postura bastante liberal, para deixar qualquer devoto de cabelo em pé. Usar drogas e falar palavrões também não são problemas.

A variedade de assuntos abordados e o ritmo ágil da narrativa evitam que a estrutura se torne repetida, mesmo explorando um número reduzido de cenários. A conclusão, porém, tenta encontrar uma moral na história e deixa no ar se o ceticismo de Uli seguirá intacto numa eventual segunda temporada. Só o hamster sabe.

Diego Olivares

Crítico de cinema, roteirista e diretor. Pós-graduado em Jornalismo Cultural. Além do Cinematecando, é colunista do Yahoo! Brasil