Especial Halloween: Carrie, o Musical
Por Fernando Pivotto
A indústria de teatro musical tem, como toda a indústria do entretenimento, a capacidade de pegar qualquer tema e transformá-lo em espetáculo. Assim, da pobreza insuportável surge Os Miseráveis, das agruras de se viver à margem surge Rent e da Guerra do Vietnã surgem Miss Saigon e Hair. Até Jesus Cristo entrou na dança, com o perdão do trocadilho, e inspirou Jesus Cristo Superstar e Godspell, além de servir de paralelo aos personagens do já citado Hair.
Levando-se em consideração a habilidade que o teatro musical tem de acomodar praticamente qualquer autor, gênero e tema, não é de se espantar que, cedo ou tarde, os produtores acabariam se interessando por um dos escritores mais vendidos da cultura norte-americana: Stephen King.
Atualmente conhecido como um dos mestres do terror, suspense e fantasia, nas décadas de 70 e 80 King era um autor extremamente prolífico e bem-recebido tanto nas prateleiras quanto nas bilheterias. Nos primeiros dez anos desde que seu primeiro livro foi publicado, 17 romances, 2 coletâneas e uma obra de não-ficção chegaram às livrarias, e oito filmes baseados em suas histórias estrearam nos cinemas. A obra que abriu caminho, seja nas páginas, nas telas ou nos palcos foi justamente Carrie, tragédia sobre uma garota, filha de mãe fanática e vítima predileta dos colegas de escola, que vê nos poderes telecinéticos recém-descobertos a oportunidade de se vingar.
Não sei se você já leu ou assistiu a Carrie, mas caso você nunca tenha tido contato com a obra, deixe-me repetir a sinopse: uma garota, vítima de bullying, se vinga daqueles que a perseguem munida de poderes sobre-humanos e de ânsia por sangue. Se você acha que a única coisa que pode tornar essa carnificina ainda melhor são canções, coros e coreografias, então nós temos o musical perfeito pra você!
Carrie – The Musical começou a surgir em meados de 1976, quando Lawrence D. Cohen, roteirista da adaptação para cinema de Carrie, juntou-se ao compositor Michael Gore para pensar numa versão musicada da história. Dean Pitchford, parceiro de Gore na produção de Fame, foi convidado a integrar o time e, em 1984, uma prévia do primeiro ato do espetáculo foi apresentada, com promessa de estreia em 1986. Se quase uma década se passou desde a ideia inicial até a perspectiva de estreia, problemas com o financiamento da empreitada atrasaram os planos em mais dois anos: foi só em 1988 que o espetáculo conseguiu iniciar sua temporada, tendo como primeira casa a sede da prestigiada Royal Shakespeare Acadamy, na Inglaterra.
Os doze anos de pré-produção deixam claro que Carrie foi um terror, pelo menos nos bastidores (sim, eu sei, esse trocadilho é terrível, mas alguém tinha que fazê-lo). O texto foi reescrito diversas vezes, inclusive despois da estreia; músicas entravam e saíam do espetáculo, independentemente da relação de canções apresentada no programa da peça; e problemas técnicos afetavam o desempenho dos atores: o microfone da protagonista, Linzi Hateley, falhava frequentemente devido ao sangue cenográfico, e Barbara Cook, que interpretava a mãe de Carrie, quase foi decapitada durante uma mudança de cenário na noite de estreia.
O musical migrou para a Broadway com quase todo o elenco original – Cook saiu assim que uma substituta foi contratada – ao custo de US$ 8 milhões, montante absurdo para a época, apenas para ter uma recepção mista de público e crítica. Apesar da boa venda antecipada de ingressos, os patrocinadores retiraram seus investimentos e a temporada, que se iniciou em 12 de maio de 1988 se encerrou três dias depois, num total de 16 previews e 5 apresentações, consolidando-se como um dos maiores fracassos da história do teatro musical.
Apesar da boa performance de alguns atores, como Hateley, as vaias direcionadas ao espetáculo abafaram os aplausos. O The New York Times chamou o musical de “o mais caro fracasso da história da Broadway”, e o evento serviu de inspiração e título para o livro Not Since Carrie: Forty Years of Broadway Musical Flops, do crítico Ken Mandlebaum. Num artigo mais recente, o The New Yorker pergunta Is Carrie The Worst Musical of All Time? (resposta: não, mas tá quase) e Dominic Cavendish o cita em primeiro lugar na lista The 10 Worst Musicals of All Time do Telegraph.
Se a produção de 1988 foi um pesadelo (rá rá), desde então o musical tem feito discreto sucesso. Uma remontagem off-Broadway, de 2012, teve uma temporada curta, porém bem-sucedida, e uma versão off-West End, em 2015, mobilizou o público londrino. No mesmo ano, uma reimaginação da história, batizada de Carrie, The Killer Musical Experience, chamou a atenção nos palcos de Los Angeles. Além dessas, outras montagens menores, quase sempre amadoras e/ou estudantis têm aparecido, de tempos em tempos. O musical também esteve em cartaz em São Paulo, em 2015, sob direção de Roberto Donadelli e Sérgio Marques.
Emily Lopez em Carrie, The Killer Musical Experience
Embora efeitos especiais nunca tenham sido estranhos às produções teatrais – os gregos usavam, há mais de dois milênios, elevadores e efeitos pirotécnicos para contar suas tragédias, e podemos ver o nível de excelência atingido por espetáculos como O Rei Leão e Wicked – o sucesso das produções off-Broadway e off-West End prova que toda a trucagem mais prejudicava do que auxiliava na história. Por mais que seja deslumbrante, num primeiro momento, a ilusão de objetos se movendo graças a poderes sobrenaturais, o núcleo de Carrie sempre foi o não-pertencimento, a incapacidade de ser aceita e a fragilidade emocional da protagonista. No instante em que a transformam numa versão da Fênix Negra, toda a força da história escorre pelo ralo, junto com os litros de sangue falso. E, claro, canções pop-rock, coro abrindo vozes harmonicamente perfeitas e corpo de baile também ajudam a diluir o drama e o horror.
Caso você ainda assim esteja curioso, embora não existam registros em vídeo profissionais das montagens oficiais, há um CD com as canções do revival de 2012 à venda na Amazon. E se você nunca assistiu ou quer rever as versões cinematográficas de Carrie, a Netflix tem em seu catálogo tanto o filme de 1976 quanto o de 2013. A versão mais recente tem duas similaridades com sua contraparte nos palcos: seu slogan é referência direta a uma das canções do musical, e ambos foram massacrados pela crítica. Se você curte um banho de sangue, não deixa de ser uma boa pedida.