Filmes baseados em peças de teatro
Por Fernando Pivotto
Ok, ok. Talvez esse não seja o melhor meme de teatro de todos os memes de teatro (de um total de 30; não somos lá muito bons com memes) para inaugurar uma coluna. Mas, ao mesmo tempo, acho que essa piada, por mais sem graça que seja, é um bom ponto de partida por tocar em um ponto que eu adoraria abordar aqui: o fato de que teatro é teatro e cinema é cinema.
Por mais que, de certa forma, a sétima arte seja derivativa da segunda e, portanto, ambas tenham muitos pontos em comum (assim como teatro e cinema têm similaridades com a literatura, ou com a televisão), é fundamental perceber as potencialidades únicas de cada uma. Não sei se você já teve a oportunidade de assistir a uma apresentação teatral gravada, mas se não, confie no que eu digo: é uma droga.
Não importa a qualidade do texto, do diretor ou do elenco. Não importa se atores e palco estão devidamente microfonados. Não importa se existe uma tentativa de edição. É inegável que muito se perde, e que ficamos só com um subproduto de tudo o que torna sua matriz especial: o teatro, sendo uma arte efêmera, deve ser visto ao vivo. A graça do teatro está justamente na presença dos atores, na presença dos espectadores, e em tudo o que acontece entre estes dois interlocutores, e a gravação só consegue captar tudo – cenografia, luzes, marcações, texto – , menos este encontro fundamental.
É mais ou menos como se você assistisse ao clipe do Bennedict Cumberbatch com roupa de captura de movimentos, no set da trilogia O Hobbit. Por mais que seja incrível ver o trabalho do ator, ou as técnicas empregadas na filmagem, o clipe tem valor como making of, não como produto final, e é bem menos impactante do que ver o Smaug numa tela de cinema.
Então pronto, já que falamos que teatro é teatro e que cinema é cinema, vamos falar da interseção entre eles. Pegue a pipoca, o óculos 3D, desligue o celular, porque ele pode desconcentrar o elenco, e confira alguns filmes que foram adaptados de espetáculos teatrais.
Festim Diabólico
Começando por um clássico, e que muita gente já deve saber que tem uma origem teatral, mas é sempre bom citá-lo. A obra de Hitchcock, de 1948, foi adaptada por Hume Cronyn e Arthur Laurents, a partir da peça de Patrick Hamilton, de 1929, e embora divirja da matriz em alguns temas (a homossexualidade dos personagens é menos do que sugerida, seguindo o padrão da indústria cinematográfica de então) é fiel a ela na estrutura.
Passando-se em um único espaço, um apartamento onde ocorre um assassinato, a trama versa sobre a tensão dos donos do lugar, que devem esconder o corpo ao mesmo tempo em que recepcionam alguns conhecidos num jantar. Embora seja um suspense eficiente, o filme ganhou maior notoriedade pela ambição de ser gravado em plano-sequência , fato impraticável graças às restrições técnicas da época. Se um único take de 80 minutos era impossível de ser realizado, a solução para a criação da ilusão de ação contínua não foi mais fácil – para a execução dos cerca de dez planos-sequência que, montados, dão a impressão de ininterruptos, Hitchcock precisou desenvolver um set que comportasse o balé de câmeras, que transitam pelos ambientes do apartamento e passam por entre os personagens a fim de captar as suspeitas e motivações de cada um. A estrutura envolvia enquadramentos que não pegassem os fios espalhados pelo cenário, paredes e objetos móveis projetados para abrir passagem para a equipe de filmagem, iluminação especial, o maior e mais complexo ciclorama já usado até então e que era composto de réplicas de prédios com iluminação própria e nuvens de fibra de vidro que mudavam de posição e formato ao longo do filme e atores em constante estado de alerta, pois qualquer deixa perdida significaria o fracasso de um procedimento particularmente complicado. Para se ter uma ideia da rigidez nas gravações, reza a lenda que um técnico teve o pé quebrado por não sair a tempo do caminho de uma câmera, e teve que ser retirado amordaçado do set, para que seus gemidos não interrompessem a cena.
Se alguns críticos consideram o efeito final apenas um exercício de estilo, é impossível negar que se trata de um teste válido sobre os limites técnicos do cinema de então, e um charmoso flerte com o teatro filmado.
Rope, dir. Ian Sinclair
Deus da Carnificina
Dirigida e co-roterizada por Roman Polanski e com um elenco impressionante (Judi Foster, John C Reilly, Kate Winslet e Christoph Waltz), a crônica sobre a fragilidade do verniz social que nos separa da barbárie é baseada na peça Le Dieu du Carnage, escrita em 2006 pela francesa Yasmina Reza, que divide com Polanski o roteiro da versão.
Drama de câmara básico, o texto trata de um casal (Foster e Rilley na versão cinematográfica, Isabelle Huppert e André Marcon no elenco original) que recepciona em sua casa os pais (Winslet e Waltz / Velérie Bonneton e Éric Elmosnino) do garoto que bateu em seu filho. Com elenco pequeno, cenografia super contida e fortemente baseado nos diálogos entre seus personagens, o filme conserva muito das características teatrais, mas sabe extrapolar estas convenções quando elas se tornam limitações – por exemplo, quando mostra o parquinho que só fica sugerido na dramaturgia de Reza.
Boa notícia: tem na Netflix, então dá pra assistir hoje mesmo. Má notícia: o overacting usado para reforçar o tom de sátira funciona bem nos palcos, onde atuações são sempre um tom acima das do cinema, mas não dá tão certo na versão de Polanski, deixando o quarteto de atores num registro de pré-histeria que não é nem de longe um dos pontos fortes do filme.
Le Dieu du Carnage, dir. Ahmed Ferhati
Frost / Nixon
Indicado ao Oscar, Bafta e Globo de Ouro de filme, ator (para Frank Langella), roteiro adaptado e diretor, o drama dirigido por Ron Howard e adaptado pelo próprio dramaturgo, Peter Morgan, é consideravelmente independente de sua matriz teatral, embora ainda conserve, em seu cerne, o foco no desenvolvimento dos personagens centrais, que era o eixo da peça.
Muito livremente inspirado na entrevista que o ex-presidente Richard Nixon (Langella, reprisando seu papel na montagem original) concedeu ao apresentador David Frost (Michael Sheen) após ser exposto no escândalo de Watergate, o texto não se furta ao romantizar, dilatar ou inventar fatos pelo bem da narrativa. Se por um lado, este artifício inspirou os protestos de historiadores e biógrafos, também valeu à dramaturgia de Morgan a indicação ao Tony, Drama Desk, Drama League e Outer Critics Circle Awards na temporada 2006 – 2007.
Ao contrário dos exemplos anteriores, em que a ação se desenrolava em um único espaço e numa única noite, Frost / Nixon possui um escopo maior, lidando com vários cenários e saltos de tempo, além de um número grande de atores no elenco – 11 na versão teatral, mais de 30 na versão hollywoodiana, fora personagens menores e extras. É interessante como as convenções das artes cênicas são traduzidas para o cinema: no palco, quatro poltronas ladeadas já fazem o público entender que a cena se passa num avião; já sua contraparte cinematográfica depende de dezenas de extras, de fileiras de poltronas, de uma estrutura física que signifique um avião, de janelas que mostrem as nuvens, etc. Claro, ainda são convenções – ninguém está voando efetivamente – mas são traduzidas diferentemente para cada meio, e perceber isso é um exercício bastante interessante.
Vale ver pelas atuações de Langella e Sheen, que são bons por si só e ficam excelentes quando contracenam. Assim como na versão teatral, são os atores que sustentam o roteiro, e o duo de protagonistas fazem isso com louvor.
Frost / Nixon, dir. Rose Riordan
Álbum de Família
Ganhadora do Pulitzer de 2008 na categoria de dramaturgia, além do Tony e do Drama Desk Awards, esta peça do dramaturgo Tracy Letts ganhou os palcos em 2007 como uma ácida comédia de humor negro sobre uma reunião familiar motivada pelo suicídio do patriarca. Levada às telas em 2013 com a direção de John Wells e roteiro de Letts, e com Meryl Streep capitaneando um elenco composto por Julia Roberts, Ewan McGregor, Benedict Cumberbatch, Juliette Lewis e outros, a obra mudou completamente de tom, tornando-se um drama familiar amargo e que só não cai no melodrama graças aos atores competentes – sobretudo Streep, que confere peso aos monólogos antes cheios de humor.
Ainda que extrapolem os limites dos cenários reduzidos estabelecidos na peça original e filmem também as cercanias da casa da família onde se passa a ação, a dupla Wells-Letts se mantém fiel ao tema primordial: as relações familiares, sobretudo entre a mãe recém enviuvada e suas três filhas. Para potencializar as tensões entre os personagens, Letts não tem medo de cortar a própria carne e enxuga as quase três horas de peça em pouco mais de duas horas de filme, privilegiando as cenas da matriarca, afinal ninguém que tem Meryl Streep como atriz principal vai dar o tiro no pé de tirar tempo de tela da atriz com mais indicações ao Oscar na história – uma delas, inclusive, justamente por este filme.
August Osage County, dir. Jasson Minadakis
Claro que a lista é super reduzida, e existem centenas de outros filmes que poderiam ter entrado facilmente aqui. Dava pra falar da Hollywood clássica, dava pra fazer uma lista só sobre musicais, só sobre cinema e teatro brasileiros, dava até pra fazer o caminho oposto e escrever só sobre as peças que se baseiam nos filmes. Ou seja, tem conteúdo pra muita lista ainda.
Mas como eu falei, teatro é a arte do encontro do espectador, então me fale de você: sentiu falta de algum filme? Já assistiu a algum dos citados aqui? Já viu alguma das peças? Quebra a quarta parede e comenta aí!