Crítica: A Criada

Crítica: A Criada

Com produção suntuosa e direção inspirada de Chan-wook Park, A Criada é mais uma obra-prima para o cinema sul-coreano

Chan-wook Park, ou Park Chan-wook, como preferir, é um gênio. Quer dizer, talvez nem todos partilhem dessa visão, mas é com certeza um dos poucos aos quais não hesito em atribuir o termo (cá entre nós, banalizado como todas outras hipérboles). Posso até estar levando este texto logo de antemão para um canto mais pessoal, o que é inevitável posto que Oldboy, segunda parte de sua trilogia da vingança e ganhador do Grande Prêmio do Júri de Cannes em 2004, classifica-se como um dos meus filmes favoritos.

Tentarei meu melhor, porém, para defender seu novo longa, A Criada, baseado apenas em sua eficiência como filme e não uma continuação do legado de Park. Felizmente, trata-se de algo simples, afinal A Criada, baseado no romance britânico Fingersmith de Sarah Waters, é cinema do tipo mais poderoso, que deixa o espectador sob um encanto difícil de se livrar.

Já foi dito que A Criada teve como base um romance, publicado em 2002. No entanto, assim como Oldboy, que por sua vez se baseou em um mangá, trata-se do tipo mais artisticamente íntegro de adaptação, puramente uma obra densamente autoral pela parte de Park. Há, claro, semelhanças que são evidenciadas simplesmente por uma mera busca na Wikipédia, mas ao realocar a trama originalmente ambientada na Inglaterra vitoriana para uma Coreia do Sul em plenos anos 30, durante a ocupação japonesa, fica mais do que claro que o diretor tem intenções de transmitir algo a mais do que um enredo.

Se apenas o grosso da trama original fosse mantido, A Criada já seria mais uma investida poderosíssima do cinema sul-coreano, mas os subtextos criados por Park não só deixam o longa mais profundo, mas também o conferem o potencial de transcender não só o material original como também a mídia na qual é apresentado. Em suas exibições norte-americanas, por exemplo, empregou-se uma técnica simples mas bastante inusitada: as legendas, geralmente tão mortificadas pela cultura americana do cinema, tornam-se ainda mais importantes por diferenciarem, em cores, os diálogos em coreano e os falados na língua japonesa. Tal distinção serve para realçar as relações de poder da história, fazendo com que simples trocas de diálogo tivessem todo um contexto adicional. Uma pena que o recurso não seja usado nas cópias nacionais, mas felizmente o roteiro polido por Park e sua colaboradora habitual Seo-kyeong Jeong ainda traz uma construção visível destas relações, preservando a camada adicional.

Falando em narrativa, ainda nem apresentei o enredo básico, portanto o farei de maneira que o mínimo de detalhes seja entregue, com fins de preservar as surpresas para os leitores que (sabiamente) irão conferir o longa sem antes pensar duas vezes. Sook-Hee é uma jovem sul-coreana que, em busca de uma vida melhor, começa a trabalhar como criada para uma condessa japonesa que vive isolada em uma enorme casa no campo. Não demora muito para que Hideko, a condessa, comece a sentir algo além de afinidade pela nova empregada, e o sentimento é mútuo. Um romance oculto toma início, apesar das muitas forças que as afligem por fora, como por exemplo um conde suspeito que se propõe a casar com Hideko. Mas não se enganem: há muito mais que isso acontecendo na trama, que apresenta pequenas reviravoltas já em seus primeiros minutos. É nesta natureza volúvel que está parte da magia que A Criada evoca, que é tornada mais impressionante considerada a tamanha minúcia aplicada na construção do mundo no qual se ambienta.

Deve-se, antes de tudo, analisar o tremendo esforço do elenco, que desde as menores participações aos personagens centrais, demonstra o tipo de resultado que apenas um autor tão articulado quanto Park conseguiria extrair. Tae-ri Kim, Min-hee Kim e Jung-woo Ha, como Sook-Hee, Hideko e o conde, respectivamente, têm um desempenho excepcional na pele de personagens que constantemente desafiam as presunções do espectador, sempre expondo uma nova faceta que os torna cada vez mais irredutíveis. Ainda mais admiravelmente, apesar das guinadas constantes, há sempre fidelidade à essência de cada um dos três, preservando suas fortes identidades.

(A segunda) Kim, por exemplo, compõe Hideko, que é facilmente a personagem mais complexa da história, com uma espécie de cuidado que é quase indescritível. Não é a toa que, no tipo de ironia que é até bela, o título original de A Criada seja Ah-ga-ssi, termo que significa Senhorita, com o qual a criada Sook-Hee se refere a sua condessa. Esta troca de perspectivas de um continente para outro também se reflete lindamente na própria natureza do filme, que, estruturado em três partes, gera com sutileza diversos pontos de intersecção no primeiro ato que são resgatados em momentos mais avançados, apresentando cenários que antes fugiam (literalmente!) do campo de visão do espectador e da própria Sook-Hee.

Posto que os longas anteriores de Park eram em essência contos ultraviolentos sobre vingança e reflexões morais profundas que não traziam consigo respostas fáceis (muito longe disso), esperava-se que A Criada, ainda mais por seu intimidador trailer, desse continuidade à visão de mundo tipicamente imperdoável do diretor. Surpreendentemente, A Criada é, de longe, o longa mais otimista do sul-coreano, sublinhando seus conflitos centrais com um romantismo inabalável e um senso de humor sempre presente, conferindo ainda mais imprevisibilidade para a experiência.

Vem à mente longas como Ligadas pelo Desejo, primeiro das irmãs Wachowski, e The Duke of Burgundy, do britânico Peter Strickland. Claro, ambos tem como centro romances lésbicos, mas a verdadeira semelhança vem da quebra de expectativas, o primeiro se apresentando inicialmente como thriller policial violento e o segundo como algo abstrato e misterioso, para depois apresentarem um tipo de energia aventuresca (no caso de Ligadas…) e romântica (The Duke…) que torna seus arcos centrais ainda mais empáticos, tendo conquistado o espectador antes do rolar dos créditos.

Aqui em A Criada, há aventura e romantismo em escalas aproximadas, que por sua vez nunca minam a dramaticidade e a plausibilidade da trama. OK, talvez plausível não seja a palavra certa para qualquer filme de Chan-wook Park, mas dentro de sua lógica específica, há… ora… lógica.

A respeito dos aspectos puramente técnicos, A Criada se classifica facilmente como o trabalho mais deslumbrante de Park até hoje. Conhecido pela extravagança, é um dos únicos capazes de empregar o excesso com uma inteligência condizente.

A fotografia de Chung-hoon Chung, primeiramente, exalta as especificidades do período e local, mas não se rende ao exibicionismo, permitindo que o público se delicie com as imagens mas também as compre como algo real e palpável.

O mesmo pode ser dito em relação ao design de produção de Seong-hie Ryu, que junto à direção de arte traz à vida uma gama delimitada de locações que, se por fora aparentam razoavelmente pequenas, por dentro carregam um universo de detalhes, todos essenciais à trama e com uma espacialidade resultante que transporta o espectador para dentro do longa, provando que 3D é uma técnica tão boa quanto absolutamente nada sem uma conceituação completa.

A montagem de Jae-bum Kim e Sang-beom Kim criativamente exercita os diferentes pontos de vista dentro de situações únicas, enquanto o trabalho sonoro de Jung Gun e Suk-won Kim confere uma textura riquíssima, principalmente nos momentos de erotismo.

O destaque, por fim, fica para a trilha sonora de Yeong-wook Jo, também responsável pelas melodias excelentes de Oldboy e Sede de Sangue, que aqui confecciona sua obra-prima, abraçando todas as pretensões de um longa de época e conseguindo um imenso sucesso em envolver a audiência e convencê-la da voluptuosidade dos eventos em tela, exaltando a paixão crescente de Sook-hee e Hideko e em paralelo as pressões do mundo ao redor. David Ehrlich, crítico do site norte-americano Indiewire, atesta que A Criada sem sua trilha musical seria o equivalente ao remake de Mogli sem os efeitos digitais, e esta comparação não poderia ser mais precisa, principalmente quando há um autor tão fortemente melódico quanto Park no comando.

Precisa-se falar do sexo em A Criada também. Enquanto é discutível se Park o retrata de maneira fetichista ou não, com um olhar masculino, não se pode negar que o sexo é um componente indispensável para o poder narrativo do longa. O sexo é afinal o que transforma a relação das duas protagonistas, servindo como um ponto de encontro também ao espectador para que realoque as tramas paralelas de cada uma das duas, com as trocas de ângulo já mencionadas. Ironicamente, Park também constrói grande crítica acima da fetichização, tomando forma no personagem do Tio Kouzuki, “guardião” de Hideko e autodenominado “velho tarado” (que, graças à ótima maquiagem de Jong-hee Song, é encarnado de maneira irreconhecível por um muito mais jovem Jin-woong Jo).

Uma obra maior do que a soma já muito positiva de suas partes, A Criada é o ápice tão esperado na carreira de Chan-wook Park. Mestre em equilibrar o grosseiro com o erudito, a violência com a doçura, Park construiu uma inconfundível assinatura, que desafia classificações. Sempre mexendo com nossos desejos mais sombrios e nos devastando no processo, Park nos surpreende desta vez ao causar a reação oposta, deixando o público vibrante com uma obra de alma aventureira, sem sacrificar seu olhar especial. Caso fosse o escolhido para concorrer ao Oscar pela Coreia do Sul, A Criada poderia marcar como o estouro merecido do diretor para um público mais amplo. Sem chances de emplacar o prêmio, porém, fica em cheque se as audiências internacionais irão resgatar e distinguir a obra em meio a todo o fuzuê da temporada ocidental de prêmios e os meses consecutivos com suas safras intermináveis de blockbusters. Felizmente, o público desta 40a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que o escolheu como Melhor Filme, deu um passo na direção certa.


Trailer


FICHA TÉCNICA
Direção: 
Chan-wook Park
Roteiro: Chan-wook Park, Seo-kyeong Jeong
Elenco: Min-hee Kim, Tae-ri Kim, Jung-woo Ha, Jin-woong Jo
Produção: Chan-wook Park, Syd Lim
Fotografia: Chung-hoon Chung
Montagem: Jae-bum Kim, Sang-beom Kim
Trilha Sonora: Yeong-wook Jo
Duração: 145 min  Distribuição: Mares Filmes
Gênero:  Drama / Suspense

Caio Lopes

Formado em Rádio, TV e Internet pela Faculdade Cásper Líbero (FCL). É redator no Cinematecando desde 2016.