Crítica: Alguma Coisa Assim

Crítica: Alguma Coisa Assim

Um verdadeiro filme de amadurecimento – para seus personagens e para seus realizadores

Imagem do filme Alguma Coisa Assim

“Two scenes that cut together well / Duas cenas que ficam bem juntas, Reflecting things they never say / Refletindo coisas que eles nunca dizem”, são alguns dos versos da bela canção Into Shade, de Lucas Santtana, que fecha o longa-metragem Alguma Coisa Assim, dirigido por Mariana Bastos e Esmir Filho. Partindo do curta-metragem homônimo de 2006, o filme acompanha uma dupla de amigos cuja relação se transforma ao longo dos anos, passando por cenas gravadas em 2013 e 2017. Já comparado com Boyhood e a trilogia Antes do Amanhecer, ambos de Richard Linklater, Alguma Coisa Assim se destaca ao intercalar as três diferentes épocas de sua história de maneira que as cenas do curta original ganhem novos significados – o que nos leva aos versos que mencionei. Para que os pulos temporais tenham esse efeito tão positivo, há um conjunto de fatores. Vamos por partes.

Alguma Coisa Assim nos apresenta os amigos Caio (André Antunes) e Mari (Caroline Abras) em 2006, aos 17 anos, procurando por uma balada para invadir na Rua Augusta. Nessa noite, enquanto Caio aflora novos lados de sua sexualidade, Mari descobre que talvez possua sentimentos mais intensos do que o esperado pelo amigo.  Já em 2013, os dois se reúnem sob circunstâncias inesperadas: Caio e seu atual namorado vão casar, o que traz de volta à tona os sentimentos agridoces de Mari, que é chamada para ser a madrinha do parceiro de longa-data. Por fim, em 2017, Mari vive em Berlim e cede sua casa a Caio enquanto este conclui seus estudos em uma clínica de embriologia – uma estadia que leva a novas tensões entre os dois.

A história do longa, acima de tudo, é sobre amadurecimento. O trunfo de intercalar três períodos tão distintos está na percepção quase imediata de que Caio e Mari mudaram muito ao longo dos anos, algo que se reflete no trabalho detalhado dos atores Caroline Abras e André Antunes. Antunes, especialmente, parece se sentir cada vez mais à vontade em seu papel conforme os anos passam, infundindo-o com uma sabedoria que só a vida traz. É Abras, no entanto, que brilha em sua construção minuciosa da personagem de Mari, a verdadeira protagonista do longa e cuja subjetividade abre caminho para as questões mais pertinentes tocadas pelo roteiro – a última discussão entre os dois comprova o imenso talento da atriz e representa um clímax forte para uma história que se perderia sob uma condução menos capaz.

No entanto, sente-se também o amadurecimento dos diretores Mariana Bastos e principalmente Esmir Filho, cuja condução ganha mais naturalidade e arrojo conforme observamos nos pulos temporais. Enquanto as cenas de 2006 são visualmente bonitas, a direção de atores e o texto são um bocado artificiais, especialmente em contraste com os anos de 2013 e 2017, remetendo mais a uma dramaturgia infanto-juvenil televisiva (Filho criou e escreveu séries como Tudo que é Sólido Pode Derreter para a TV Cultura). Os floreios visuais aos quais Filho é tão afeito no curta também são usados de maneira mais criteriosa e portanto eficiente nos materiais mais recentes, que co-dirigiu com Bastos. Talvez não tenha sido uma escolha consciente, mas essa diferença de sobriedade entre os trechos torna Alguma Coisa Assim mais convincente e impactante do que a maioria dos longas ‘coming of age’.

Responsável por administrar essas idas e vindas sem que se tornem gritantes demais, a montadora Caroline Leone (que estreou na direção de longas com o sensível Pela Janela) encontra rimas visuais e temáticas entre os períodos assim como cria momentos realmente hipnóticos, como a “viagem” de Caio e Mari na floresta. Essa fluidez ainda surge no desenho de som de Martín Grignaschi (que também fez um ótimo trabalho em Pela Janela), realçando ruídos naturais para conferir uma espécie de diegese às sensações internas dos personagens e também para costurar presente e passado com mais naturalidade. A escolha de apresentar as cenas de 2006 e 2013 como memórias foi uma aposta arriscada dos diretores e de Leone, mas é uma que valeu a pena.

Por fim, voltamos ao verso: “Two scenes that cut together well”. Parece simples, mas o que Bastos, Filho, Abras, Antunes, Leone, Grignaschi e o compositor Lucas Santtana alcançam com Alguma Coisa Assim é realmente notável e não deveria passar despercebido pelo público que procura outros tipos de filmes no Brasil, cujo limitado circuito cinematográfico afoga uma variedade de verdadeiras joias nacionais sob um mar de produções estrangeiras. Pode não se tratar de nada revolucionário ou de fato inovador, mas não é todo dia que se vê um drama adulto tão criativo e arriscado em sua execução quanto esse, que explora com coragem as capacidades de sua equipe e é capaz de sintetizar anos de vida em apenas 80 minutos.

Caio Lopes

Formado em Rádio, TV e Internet pela Faculdade Cásper Líbero (FCL). É redator no Cinematecando desde 2016.