Crítica: Camocim

Crítica: Camocim

Documentário sobre campanha no interior de Pernambuco mostra como debate político no Brasil ainda é primário

Imagem do filme 'Camocim'

Num ambiente de debate político onde propostas e projetos ficam em segundo plano, quais são os fatores capazes de mobilizar os eleitores? É a pergunta na cabeça de muitos analistas às vésperas da próxima eleição presidencial e o documentário Camocim oferece um vislumbre das respostas, ainda que estas não sejam muito animadoras.

O cineasta francês radicado no Brasil Quentin Delaroche parte da pequena cidade de Camocim de São Felix, no interior pernambucano, para retratar um microcosmo do que se tornou nossa sociedade quando o assunto é a escolha dos governantes. Filmado durante a campanha pela prefeitura local em 2016, o documentário mostra uma população dividida em três grupos: os “azuis” (partidários do candidato Giorge do Carmo), os “vermelhos” (favoráveis à reeleição do prefeito Uilson de Teté), e uma juventude cética decidida a anular o voto, mesmo que trabalhe para um dos lados.

A jovem Mayara, protagonista do filme, é quase uma junção dos três: tem apenas 23 anos, já foi “vermelha” e agora está do lado azul, também por conta do amigo César Lucena, candidato a vereador para o qual assume a coordenação da campanha. Ao contrário dos amigos de sua idade, ela ainda vê na política o campo das mudanças possíveis, ainda que em nenhum momento do longa fique claro exatamente o quê precisa mudar.

Pelo contrário. Chavões como “é hora da novidade”, “eu sou apenas mais um igual a vocês” e outros são bradados a plenos pulmões pelos candidatos. A partir de diálogos registrados sem interferência de Delaroche, que opta por não usar a estrutura de depoimentos para a câmera, é possível compreender que o representante do novo é, na verdade, filho do prefeito retrasado, demonstrando o ciclo de concentração de poder nas mãos dos mesmos que domina o jogo político no Brasil.

Enquanto Mayara e César partem para o corpo com a corpo junto a potenciais eleitores, seus esforços são engolidos por um clima que representa, no jargão da internet, o “mais puro suco de Brasil”. Passeatas comandadas por trios elétricos se confundem com blocos de carnaval, utilizando jingles que fazem alusões à festa popular, rojões explodem no céu como se fosse a comemoração de uma torcida de futebol, e os cânticos de devoção religiosa estão sempre na ponta da língua. Se a política virou Fla x Flu, Deus foi escolhido como o juiz da partida.

Camocim costura essas relações de forma emblemática, como na sequência que trafega entre o comício de um dos candidatos para o culto numa das Igrejas locais. A transição é tão suave que é difícil perceber quando termina um e começa o outro. Ao mesmo tempo, questões como a homossexualidade da protagonista, mesmo num contexto altamente conservador e com forte presença da religião, expõem as contradições do país, ainda que não sejam o foco do filme.

Por um destes paradoxos, a cena final começa com um grupo de jovens da cidade reunido no bar, na noite após a eleição, cantando “Tempo Perdido”, da Legião Urbana, música lançada pela banda de Renato Russo em 1986, logo após da queda da Ditadura Militar. Entoando velhos refrões e preso a uma discussão política primária, o Brasil retorna ao mesmo lugar de décadas atrás.

Diego Olivares

Crítico de cinema, roteirista e diretor. Pós-graduado em Jornalismo Cultural. Além do Cinematecando, é colunista do Yahoo! Brasil