Crítica: Dois Papas

Crítica: Dois Papas

Tolerância e maturidade

Em nosso mundo cada vez mais polarizado, intolerante e convencido de suas ideias, é difícil ver quem de fato se coloca à disposição de ouvir e respeitar opiniões contrárias. O diretor Fernando Meirelles traz uma visão sensível e concisa em forma de uma convidativa reflexão sobre posicionamentos políticos, costumes, posições sociais e representatividade, através de conversas profundas entre dois papas: Bento XVI e Francisco, em uma aula sobre escutar, aprender e até nutrir alguma admiração por alguém tão diferente de nós mesmos.

Após a morte do Papa João Paulo II em 2005 e a eleição de Bento XVI como novo pontífice da Igreja Católica, a obra acompanha a trajetória do atual Papa Francisco, também conhecido como Jorge Mario Bergoglio, a partir de 2012, no período em que, desacreditado no caminho que a instituição e sua imagem vinha tomando, pretendia se aposentar (mesmo ainda distante idade em que cardeais costumam sair de cena). Ao perceber que Bento XVI não respondia suas cartas, decide comprar uma passagem para o Vaticano, e logo em seguida se surpreende com um convite do próprio papa para visitá-lo. É quando Bergoglio e Ratzinger dão início há uma duradoura e emocionante conversa sobre si mesmos, e sobre o futuro da Igreja.

Durante as inúmeras tentativas de Bergoglio em pedir para que o até então Papa autorize sua aposentadoria, motivo pelo qual está lá, vamos percebendo que as verdadeiras intenções de Ratzinger podem ser muito mais profundas. Com conversas descontraídas e cotidianas, a obra também abre espaço para discussões sérias a respeito dos rumos do catolicismo, colocando o conservadorismo de Bento XVI frente às ideias progressistas de Francisco.

Se em uma micro perspectiva temos dois homens de idade tentando conviver com as diferenças e nos ensinando a ser mais maduros e menos extremistas, não podemos deixar de apontar as lições de uma perspectiva mais abrangente, que visa conscientizar o público de forma a perceber os males do egoísmo e da individualidade. Temos conversas explícitas sobre a a valorização dos pobres, sobre a importância de visualizar o mundo através de uma ótica coletiva, algo evidenciado pela paixão de Bergoglio por futebol.

Enquanto Anthony Hopkins e Jonathan Pryce estão impecáveis em seus papéis, o agnosticismo do diretor permite aqui uma visão de fora, com um ótimo humor muito bem dosado, que se afasta de uma abordagem sagrada e cansativa e religiosa. Aqui não há religiosidade, mas ao mesmo tempo Meirelles não deixa de fora um forte espiritualismo que respira entre os planos de transição, em paisagens que nos tiram o fôlego, apresentadas diante de uma competentíssima direção de fotografia, o que nos ajuda diretamente a emergir na lenta narrativa, e a não nos cansar do conteúdo filosófico pelo qual o roteiro costura seu enredo, além da envolvente e sutil trilha musical que contextualiza bem a época e o espaço da trama.

Demonizando a tortura, o autoritarismo e a discriminação, Dois Papas consegue apontar delicadamente os maiores defeitos da humanidade, sem tentar ser mais do que realmente é. Os flashbacks de Francisco dão alma à história, principalmente num tocante recorte sobre a ditadura militar vivida pelos argentinos durante a década de 1970. Nos instruindo a não julgar sem conhecer e a tolerar acima de tudo, a obra nos mostra que cada um de nós possui anjos e demônios dentro de si mesmo, falhas e acertos que nos moldam ao longo da vida. Um válido e interessante convite para qualquer espectador rever seus posicionamentos, e a analisar a humanidade como um todo. Como diz o Papa Francisco em um de seus pronunciamentos: “Em um mundo onde ninguém parece ser o culpado, todo mundo é culpado”.

João Pedro Accinelli

Amante do cinema desde a infância, encontrou sua paixão pelo horror durante a adolescência e até hoje se considera um aventureiro dos subgêneros. Formado em Cinema e Audiovisual, é idealizador do CurtaBR e co-fundador da 2Copos Produções. Redator do Cinematecando desde 2016, e do RdM desde 2019.