Crítica: Martírio

Crítica: Martírio

Por Beatriz Ribeiro

Quando a cabeça de gado é mais importante do que gente

O indigenista, antropólogo e jornalista Vicente Carelli relata, em Martírio, a triste situação dos índios Guarani Kaiowá, que foi iniciada há mais de um século no Mato Grosso do Sul.

“Um documentário com quase três horas de duração”; é assim que Martírio é retratado em algumas ocasiões. É claro que lhe vem à cabeça pensar que três horas de documentário retratando uma aldeia de índios que você até então mal sabia que existia não deve ser muito empolgante, contudo, o documentário lhe prova o contrário e cala todos os seus pensamentos generalizantes e tentativas de desistências. Empolgante, aventureiro e com uma temática histórica urgente, o documentário nos mostra uma realidade brasileira (vinda desde o final da Guerra do Paraguai) que não é exibida na mídia e muito menos ensinada nas escolas.

Com o final da guerra em 1870, o Paraguai teve algumas de suas terras tomadas pelo Brasil. Hoje, parte do território que pertence ao estado do Mato Grosso do Sul um dia foi habitado pelos índios Guarani Kaiowá. Como qualquer outra conquista de território, quem sai em desvantagem são os índios. Negligenciando o problema desde o início, o governo brasileiro (que mal se importava com seus próprios índios) não deu atenção aos Guarani Kaiowá, considerando como “paraguaia” a população indígena que foi expulsa da grande maioria de suas terras, recebendo apenas 2% dos milhares de hectares que foram dados aos ruralistas e que passaram a ser ocupados por pastos de gados e plantações. Com isso, uma incessante luta e resistência à cultura surgiu, vivendo até os dias de hoje e matando centenas de índios em conflitos armados e violentos combates que se dividem entre aqueles que dizem defender suas terras contra quem as querem de volta.

Narrado em primeira pessoa pelo diretor, Martírio nos apresenta os dois lados da história de um modo completo e estimulante, provando que a nossa cultura é enraizada nos pensamentos do agronegócio e totalmente relapsa às minorias. “O que me entristece aqui é saber que cabeça de gato vale mais do que gente”, diz um promotor de justiça que visita a aldeia para entender a situação alarmante da região nas primeiras imagens captadas por Carelli entre 1988 e 1999. “Eles tiraram tudo de nós, antes nós plantávamos nossa própria comida, tínhamos a natureza ao nosso favor, e hoje dependemos de cesta básica para sobreviver”, diz um índio militante em seu discurso na aldeia durante as filmagens – que voltaram a ser gravadas entre 2012 e 2014.

Com suas plantações queimadas, familiares mortos em tiroteio e a total falta de interesse político com esse povo, os Guarani Kaiowá ainda resistem e tentam lutar por suas terras tomadas a mais de 100 anos. Mas por que não somos noticiados sobre esses acontecimentos? Vicente Carelli diz em entrevista que “o modo de vermos os índios no Brasil foi herdado do processo colonial, em que eram tratados como selvagens e mortos por bandeirantes”, e ainda acrescenta: “antes de 1988 os índios eram considerados incapazes pela constituição”.

Vicente Carelli tem um vasto histórico indigenista e diversos documentários sobre o tema no país, sendo premiado em vários festivais e mostras por todo o Brasil, Martírio também teve a participação de Ernesto Carvalho e Tita. O documentário faz parte do projeto Sessão Vitrine Petrobrás, que leva aos cinemas diversas longas brasileiros independentes. Martírio que já polemizou diversos festivais, inclusive opiniões desfavoráveis em Brasília, ira estrear nas salas de cinemas no dia 13 de abril com o intuito de mostrar ao Brasil o que já devia ser discutido a muito tempo.

FICHA TÉCNICA
Documentário | 2016 | 162’ | Brasil
Direção: Vincent Carelli em co-direção com Ernesto de Carvalho e Tita
Roteiro: Vincent Carelli, Tita e Ernesto de Carvalho
Fotografia: Ernesto de Carvalho
Montagem: Tita
Desenho de Som: Gera Vieira, Nicolas Hallet e Tita
Mixagem: Gera Vieira e Nicolas Hallet
Música: Bro MCs
Elenco/Entrevistados: Celso Aoki, Myriam Medina Aoki, Oriel Benites, Tonico Benites e comunidades Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul.
Produtora executiva: Olívia Sabino
Produtoras: Papo Amarelo & Vídeo nas Aldeias

Prêmio e Festivais

49º FESTIVAL DE BRASÍLIA DO CINEMA BRASILEIRO

– Melhor Filme de longa-metragem | Prêmio do Júri Popular

– Prêmio Especial do Júri Oficial

– Prêmio Marco Antônio Guimarães

40a MOSTRA INTERNACIONAL DE CINEMA DE SÃO PAULO

– Melhor Documentário Brasileiro (Prêmio do Público)

– Prêmio Spcine para o Cinema Brasileiro de Melhor Documentário

IX JANELA INTERNACIONAL DE CINEMA DO RECIFE

– Melhor Filme (Júri Oficial)

– Melhor Imagem (Júri Oficial)

31o FESTIVAL INTERNACIONAL DE CINE DE MAR DEL PLATA

– Melhor Longa-metragem da Competitiva Latino-americana

PACHAMAMA Cinema de Fronteira 2016

– Melhor filme (Prêmio do Júri)

– Melhor filme (Prêmio Universidade Federal do Acre)

14o FestCine Amazônia

– Prêmio Mapinguari de Melhor Longa-metragem

13o FESTIVAL DE CINEMA DO VALE DO IVINHEMA

– Prêmio Especial do Júri

Aldeia SP – Bienal de Cinema Indígena (Filme de Abertura)

XII Panorama Internacional Coisa de Cinema

PLANETA.doc Festival Internacional de Cinema Socioambiental 2016

Forumdoc.BH 2016

Festival Kinoarte de Cinema

VII Mostra de Cinema da Amazônia

8ª Semana dos Realizadores

Festival Internacional de Cine de San Cristóbal de las Casas

10ª Mostra Cine BH

Vitória Cine Vídeo

Amazonas Film Festival

Vivo Open Air

20ª Mostra de Cinema de Tiradentes

Cinéma du Réel 2017

GRABA Festival Audiovisual de Mendoza

Beatriz Ribeiro