Crítica: Mudbound – Lágrimas sobre o Mississipi
Maduro e ambicioso, drama da diretora Dee Rees vai além dos feitos históricos
Já falamos aqui no site sobre a importância de Mudbound: Lágrimas Sobre o Mississipi caso este fosse de fato indicado a prêmios como o Oscar. Isso se realizou: a Academia o indicou por roteiro adaptado (Dee Rees é a primeira mulher negra indicada na categoria), canção original (para Mary J. Blige), atriz coadjuvante (também para Blige) e por fim pela direção de fotografia (Rachel Morrison é a primeira mulher a competir na categoria). No entanto, deixando a importância de lado, Mudbound: Lágrimas sobre o Mississipi é de fato um filme de respeito por sua ambição e também pela maturidade com a qual aborda temas diversos, tais como racismo, stress pós-traumático e o lugar da mulher na sociedade da década de 40.
Baseado no livro homônimo de Hillary Jordan, o roteiro co-escrito por Rees e Virgil Williams elabora um teia complexa que envolve um grande elenco de personagens, dando a cada um deles o espaço necessário para conquistar profundidade. A história segue duas famílias do Mississipi, uma branca e outra negra: os McAllan se mudam do subúrbio para o campo lamacento, enquanto os Jackson vivem de sua colheita e pretendem comprar seu próprio pedaço de terra. O primeiro ponto de conexão entre as duas é nada menos do que a 2ª Guerra Mundial, que causa a saída dos jovens Jamie McAllan (Garret Hedlund) e Ronzel Jackson (Jason Mitchell) do país. Após a volta, os dois criam um inesperado vínculo, que somado às demais aflições de seus familiares, vira a realidade das duas famílias de cabeça para baixo.
O foco, contudo, não recai apenas sobre Jamie e Ronzel, algo que parecia ocorrer de acordo o trailer. Rees e Williams dedicam quantidades equilibradas de tempo não só aos dois como também seus familiares: de um lado, temos o casamento frustrado de Henry (Jason Clarke), irmão de Jamie, e Laura McAllan (Carey Mulligan); do outro, Hap (Rob Morgan) e Florence Jackson (Mary J. Blige) trabalham no campo para sustentar sua família enquanto esperam pelo retorno do primogênito. Mais interessantes são as interações entre os McAllan e os Jackson, que sugerem a hierarquia racista da época com sutileza e sem manipulação. É uma série de pequenos gestos velados que Rees consegue capturar com naturalidade, não só em seu roteiro mas também em sua direção.
A tensa dinâmica entre as duas famílias é refletida com precisão pelo elenco. Hedlund e Mitchell são os destaques, compondo dois homens que, completamente diferentes, são iguais nas cicatrizes que trouxeram da guerra. O primeiro tem pinta de galã e o segundo tem a cabeça firme na dura realidade, e ver os dois interagindo é sempre fascinante. Enquanto isso, Morgan (que achado!) e Blige (indicação merecida) são acertadamente sutis no retrato de um casal que internalizou suas dores e traumas para criar uma família esperançosa, enquanto Clarke e Mulligan são convincentes na maneira como traduzem o frustrado casamento de seus personagens e as atitudes sutilmente racistas com os Jackson.
Na cadeira da diretora, Rees extrai o máximo do grande elenco e evoca uma forte identidade local à história, apesar dos limitados posicionamentos de câmera e uma falta de momentos narrativos puramente visuais. Talvez o uso constante de voice-overs (narrações), técnica muitas vezes desprezada por seus fins expositivos, sirva como um mecanismo que além de traduzir a polifônica subjetividade dos personagens também compensa pela superficialidade das imagens.
E se essas imagens são na maioria das vezes superficiais, então são registradas com riqueza por Rachel Morrison, que faz um uso expressivo de iluminação natural e valoriza os tons de marrom da lama e do campo. Embora sua câmera seja trêmula e alguns movimentos não obedeçam a nenhum propósito narrativo, Morrison acerta na proximidade aos rostos dos atores, encontrando também consistência na iluminação dos tons de pele brancos e negros (algo que muitos diretores de fotografia tem certa dificuldade em atingir). Talvez por isso mesmo foi a escolhida para trabalhar com Ryan Coogler no esperado Pantera Negra, ao invés de algum outro nome já estabelecido no cinema blockbuster.
Como se trata de um filme diversificado em seu elenco, aspectos como montagem e trilha-sonora também não poderiam deixar de trabalhar com variedade. A começar pela montadora Mako Kamitsuna, que encara o desafio de criar coerência em meio à cacofonia de tramas e vozes, também fazendo uso discreto e competente de montagem não-linear. Inevitável que nessa tarefa árdua alguns cortes venham fora de lugar e certas cenas não encaixem bem onde estão, no entanto é um trabalho que apresenta Kamitsuna como alguém que aceita riscos.
Já as músicas de Tamar-kali capturam os sentimentos do campo, evocando uma beleza rústica e também ameaça no uso exclusivo e bastante flexível de cordas. Há também espaço para um certo ecletismo, trazendo elementos de cantos religiosos sulistas e até mesmo o jazz animado da época. É uma notável estreia na composição para filmes, portanto espera-se que Tamar-kali se envolva com novos e promissores projetos.
Com um design de produção admirável de David J. Bomba, Mudbound: Lágrimas sobre o Mississipi é um salto na carreira da diretora Dee Rees, que anteriormente havia feito o simples Pária e o televisivo Bessie. Há momentos que não poderiam ser feitos por qualquer um, como breves batalhas de tanque e bombardeiros e uma variedade de locações que garantem ao filme a alcunha de épico. Ainda mais impressionante é a habilidade de Rees de somar tudo isso e esculpir uma história que além de intimista, apresenta uma visão de mundo que impacta pela maturidade. O drama pode ser incendiário, mas assim como o ótimo Três Anúncios para um Crime, suplica pelo melhor de todos. Parece clichê dizer isso, mas Mudbound: Lágrimas sobre o Mississipi é realmente um filme essencial para os nossos tempos e talvez até para o futuro próximo.
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