Crítica: Boneca Russa (1ª Temporada)
A autodescoberta e o prazer de viver
Fantasiada de comédia, Boneca Russa, série da Netflix, na verdade mergulha muito mais fundo quando você menos espera. Desenvolvendo um forte drama entre os personagens e suas vivências cheias de complicações, o roteiro ainda brinca com situações divertidas e com o clássico “dia da marmota”, já tão utilizado pelo cinema, e que cada vez se mostra mais versátil ao ser aplicado em diversos temas e de maneiras diferentes. Esse é o caso da série.
Depois de fugir de sua própria festa de aniversário no apartamento de sua amiga Maxine (Greta Lee), a irônica e maluca Nadia (Natasha Lyonne, também criadora da série ao lado de Amy Poehler e Leslye Headland) sofre um acidente de carro e morre. Mas, no mesmo instante, ela acorda no banheiro do apartamento de sua amiga, de onde tinha acabado de sair antes de deixar o prédio e sofrer o acidente, e tudo passa a acontecer do mesmo jeito que tinha acontecido. Depois de morrer (das formas mais ridículas possíveis) várias outras vezes e acordar no banheiro depois de todas elas, é que Nadia percebe que está num loop sem fim. Enquanto tenta descobrir a razão por trás disso, Nadia conhece Alan (Charlie Barnett), um solitário e infeliz homem que está passando pelo mesmo que ela.
Os primeiros episódios desviam nossa atenção com um tom cômico que não arranca risos e uma grande perda de tempo com mortes repetitivas. Com isso, a série perde força e oportunidade de nos apresentar logo Alan, o personagem mais importante da série depois da protagonista (Nadia), que só entra na série no final do terceiro episódio. Mas tudo isso ainda não é capaz de derrubar a grandeza de Boneca Russa, que a faz ser uma das séries mais criativas da Netflix nos últimos tempos: sua capacidade de emocionar, nos deixar tensos e nos fazer sentir exatamente o que os personagens estão sentindo, enquanto simplesmente explora uma razão para os acontecimentos (aparentemente inexplicáveis) com muito humor.
De mansinho, Nadia se aproxima de Alan para que ambos tentem entender qual a ligação que possuem, uma vez que parecem ser os únicos com mortes que se repetem. Também vamos conhecendo-os melhor, como a relação de Nadia com seu ex-namorado, que não supera o fim do relacionamento. E a de Alan com sua namorada, que por sinal quer terminar com ele. Acompanhamos toda a dificuldade que Nadia e Alan possuem de encontrarem a felicidade nos pequenos prazeres, e vemos o quanto estão perdidos em relações falsas e desgastantes. Sem saberem amar a si mesmos, ambos vão aprendendo sobre a vida com seus erros, até que começam a descobrir o motivo de estarem presos em um loop.
Com um pouco de rodeio, a série pode demorar um pouco para nos fisgar, mas a segunda metade da série compensa a espera. Entramos de cabeça em um forte drama sobre traumas de nosso passado (com cenas bem sombrias) e suas influências em nosso presente. Ainda, por fora, temos discussões sobre como fazer o que é certo, e a importância de ajudar os outros. Nadia, que é extremamente egoísta, percebe aos poucos que a vida só e gentil com quem é gentil com o próximo. E Alan passa a reconhecer a importância de enxergar a felicidade do outro e respeitá-la, mesmo que você não concorde com as decisões de determinadas pessoas.
Boneca Russa traz o que de mais inventivo e emocionante podemos encontrar em uma produção de “dia da marmota”. Não faltam personalidades cativantes e uma trama que aguce nossa curiosidade e nos coloque para pensar a respeito das relações entre as pessoas. Com personagens que se descobrem com o tempo, e buscam mais que tudo vontade e motivação para viver, nos sentimos diante da realidade vivida de forma humorística e divertida, mas com um pé no que é triste e difícil, sem transitar entre os gêneros de maneira forçada ou surreal.