Crítica: Divino Amor
Fantasia ou premonição?
Uma criança narra uma história acontecida no Brasil de 2027. Ela fala para nós, em 2019, sobre algo que para ela é passado. Se anacronismo hoje, do lado de cá da tela, é uma palavra usada à exaustão para falar do país em franca regressão, Divino Amor se apropria disso para jogar com a compreensão de tempo, construindo uma distopia contada por alguém que enxerga aquela história pelo retrovisor. É apenas um dos muitos símbolos presentes no fascinante filme de Gabriel Mascaro.
O roteiro escrito pelo cineasta em parceria com Esdras Bezerra, Lucas Paraizo e a britânica radicada em Pernambuco Rachel Daisy Ellis tem como protagonista Joana (Dira Paes). Devota da religião evangélica que empresta o nome ao longa-metragem, ela vive entre os cultos, festas de adoração em formato de rave onde o êxtase é a louvação e o trabalho num cartório.
É em seu emprego onde Joana vê brechas para cumprir a missão que se auto-incumbiu. Quem vai até ela procurando apenas resolver a burocracia do pedido de divórcio costuma ser incentivado a repensar o assunto. Afinal, nada é mais sagrado do que a união entre homem e mulher para constituir família, e a personagem não deixará que esse laço seja rompido tão facilmente.
Divino Amor, portanto, reflete sobre a interferência do Estado na vida pessoal dos indivíduos, assim como questiona os interesses envolvidos nessa interferência. Afinal, invocar o nome de Deus parece ter virado salvo-conduto para qualquer tipo de comportamento no “Brasil acima de tudo” do mundo real.
Numa ousadia narrativa, Mascaro foge do tom da paródia para levar sua reflexão às últimas consequências. O filme pergunta então se seus personagens secundários, sempre com um discurso religioso na ponta da língua – como o marido de Joana, Danilo (Julio Andrade) ou o pastor (Emílio De Mello) que atende via drive-thru, estão mesmo aptos a dar conta de um milagre, quando este se manifesta.
Sem querer ser uma denúncia, e mais uma provocação, o filme se aproveita de sua ambientação futurista para construir imagens potentes, envolvidas em cores de neon, registradas pelo diretor de fotografia mexicano Diego García (que já trabalhara com o cineasta em Boi Neon). O clima pesado dos seus temas ganha assim uma conotação lúdica e sensorial, algo comum ao chamado “cinema de gênero”, que no momento conturbado da crise de valores e rumos pela qual passa a contemporaneidade, tem sido rico em respostas à altura.