Crítica: Coringa
Redefinindo o conceito de conflito
Apostar em um vilão completo e popular como o Coringa para trazer à tona uma das abordagens mais icônicas e intimistas sobre conflitos internos e externos que o cinema já viu foi obviamente uma jogada perfeita do diretor e roteirista Todd Phillips e de seus produtores. Ao longo de duas horas de material audiovisual, presenciamos, sentimos, e nos emocionamos com muito mais que um simples filme sobre qualquer vilão pode nos dizer. Por meio de uma visão crítica, com o mínimo de expositividade possível, porém com uma profundidade emocional impressionante, somos arremessados à uma realidade tortuosa, porém pouco diferente da que vivemos.
Após perder seu emprego numa agência como palhaço, e cansado de ser mal compreendido, humilhado e agredido, o aspirante a comediante Arthur Fleck (Joaquim Phoenix) toma decisões extremas para lidar com as injustiças que sofre. Além de agravar sua loucura, isso acaba gerando um grande movimento popular contra a parcela mais rica da população de Gotham City.
Desde as consultas que Arthur possui por meio do serviço social, até a vida que leva no trabalho com seus colegas e as obrigações com a mãe em sua casa, o roteiro (co-escrito por Scott Silver) nos ambienta e prepara, sem pressa de contextualizar o histórico do personagem, para o momento em que a personalidade “Coringa” começa a surgir e fazer com que Arthur cometa crimes drásticos dos mais variados tipos, ainda que completamente consciente dos seus atos. Embora nos revoltemos junto com o personagem diante do sofrimento e injustiças que passa, os seríssimos distúrbios psíquicos de Arthur são sem dúvidas o maior motivador das ações que toma e ao mesmo tempo a razão dos acontecimentos que o cercam.
A maior genialidade do filme mora na capacidade do enredo em externalizar, de forma gradativa e crível, os conflitos internos de Arthur Fleck na violência extrema cometida contra pessoas inocentes, porém nada gentis. Ao nos fazer sentir um misto de pena, revolta e medo pelas situações vividas por Fleck, a obra nos gera um imediato e duradouro autoquestionamento sobre para quem ou que causa de fato estamos “torcendo” nessa história, enquanto enxergamos e nos identificamos com nossos próprios desejos mais obscuros de justiça. De um egocêntrico apresentador de TV disposto a tirar sarro e envergonhar cidadãos da cidade em seu show (justamente o que seu público espera consumir), à uma população de valores deturpados que segue cegamente aos impulsos de um movimento extremista, Coringa vai além da plausibilidade dos eventos deixando claro o quão atual e necessária é sua história.
Se em algum momento nos questionamos quão pretensiosas as sequências do filme podem soar, em questão de segundos nos lembramos de como Phillips justifica bem toda a poesia de seu filme através do estado de espírito e a instabilidade psicológica de seu personagem principal. A fotografia suja e escura de Lawrence Sher, juntamente ao design de produção, é responsável por nos colocar numa situação de desconforto e ao mesmo tempo de fascinação, simplesmente por estarmos diante de uma retratação tão valorosa e delicada de uma Gotham recheada de conflitos e preconceitos em todos os cantos. Joaquim Phoenix literalmente dispensa comentários.
Para além do vilanismo ou do anti-heroísmo, Coringa se mostra, acima de tudo, um filme sobre a humanidade e suas atrocidades, hipocrisias e imposturas. Executada de forma sublime, a obra dosa perfeitamente entre a crueldade e a loucura de um homem injustiçado, vítima e culpado das ações e reações que o definem. A trama cumpre uma tarefa dificílima de forma inventiva e eficiente: garantir o entretenimento básico sem perder forças na forma como constrange e incomoda por meio de suas provocações. É um filme feito para gerar discussões e reflexões a todo tempo, e que felizmente não deve ter dificuldades para encontrar seu público.