Coluna do Matheus: ‘A Sombra do Pai’ discute nossas ruínas afetivas

Coluna do Matheus: ‘A Sombra do Pai’ discute nossas ruínas afetivas
A Sombra do Pai filme

Semana passada, ao escrever, para o UOL, uma reportagem sobre o fenômeno Vingadores: Ultimato, ouvi de um professor de cinema que a hegemonia dos filmes de super-heróis fatalmente levaria os realizadores brasileiros a uma encruzilhada.

De duas, uma. Ou haveria uma tentativa de copiar o modelo de sucesso nas bilheterias, levando à produção de uma espécie de pastiche do cinema americano, ou os cineastas nacionais dobrariam a aposta na resistência, como fizeram os idealizadores do cinema novo.

Com o celular na mão e uma encruzilhada na cabeça, repassei a questão para a cineasta Gabriela Amaral Almeida, a quem ouvi para a mesma reportagem, e que naquela semana lançava A Sombra do Pai, seu segundo longa-metragem.

“Como assim? Já somos resistência. Não temos nem como pensar em fazer um pastiche do cinema americano”, respondeu ela.

Eu tinha acabado de assistir ao filme, que ganhava outra chave de compreensão a partir de então.

Se, em O Animal Cordial, seu primeiro filme, a pulsão de morte explodia num salão fechado de restaurante, comandado por um protótipo de cidadão de bem que, ao ter a integridade ameaçada, era capaz de aplicar todo tipo de suplício, contra culpados e inocentes, em A Sombra do Pai o caminho é a introspecção.

Lá, como diria Elio Gaspari, o diabo mora nos detalhes. O filme conta a história de uma família em acelerado processo de desintegração. O desmoronamento é acompanhado por uma criança, que recorre ao fantástico numa tentativa de se conectar com o além. Essa tentativa de conexão funciona como suporte a uma realidade áspera, empobrecida, e desarticulada.

Julio Machado e Luciana Paes em cena de ‘A Sombra do Pai’

O pai é um trabalhador da construção civil que, a certa altura da vida, se vê como mera força de trabalho entre máquinas, britadeiras, jornadas extenuantes. E que, fora dessa força de trabalho, é carta fora do jogo, que pode ser cuspida e expelida como corpo destituído de qualquer subjetividade. Aquele corpo morre o tempo todo na contramão atrapalhando o tráfego, o sábado e o público.

Naquela estrutura rudimentar rodeada pela morte, o embrutecimento é quase naturalizado, como são naturalizadas as relações de gênero na casa da qual o personagem masculino se ausenta. Aquela casa é um microcosmo dos impasses de uma sociedade que tenta dialogar para desconstruir as violências impostas nestes papeis; ele, como provedor, tem a negligência em relação à filha autorizada (certamente incentivada) pelo corpo social.

Os cuidados recaem às figuras femininas que, uma a uma, são retiradas de cena. Primeiro, a mãe, que está morta e cuja memória está em processo de apagamento por ordem do pai.

Depois, a tia, que a diretora classifica como “figura feminina funcional” e é responsável por organizar a casa do irmão até ter a mão pedida em casamento.

Aqui, um ponto interessante: a ameaça de desorganização desse já precário ordenamento familiar é personificada por um intruso que parece não se encaixar naquela cena.

O namorado da tia é um arquétipo do empreendedor contemporâneo, que vende não apenas produtos, mas valores que esses produtos embutem e, ao mesmo tempo, não convence nem parece convencido de nada do que diz.

A artificialidade daquela relação construída em terreno líquido é evidenciada nos sorrisos forçados e na festa de aniversário da protagonista, uma referência a um outro trabalho da diretora, o curta-metragem A mão que afaga. Como rejeitam as fórmulas-prontas, os filmes fazem o espectador demorar a perceber que aquela festa de alegria inflacionada é, na verdade, um horror dos mais peculiares.

É nessa hora que a cineasta mostra habilidade para driblar as expectativas criadas em torno daquele ambiente de apatias – e que ferve em fogo brando. Em que momento o namorado da tia vai se revelar um canalha? Em que momento os maldizeres da criança vão se confirmar?

É como se esperássemos, o tempo todo, o tapa. Mas a sombra do pai cobre outra violência. Uma violência não falada. Que não enche o recinto de sangue, como em O Animal Cordial.

A diretora Gabriela Amaral Almeida

A violência é descortinada como a espiada de uma janela que não tem pra onde apontar em cidades igualmente sufocadas e verticalizadas. De um ambiente sombrio que não tem vazão no quintal do arrebalde, igualmente fosco e mal iluminado.

“Essa ausência paterna, apoiada pelo patriarcado e pela estrutura de organização socioeconômica que autoriza que homens a se ausentem de seu papel sensível, humano e educador de um pai, são questões que estão aí há muito tempo”, diz a diretora.

E é na mesa do café da manhã, comum a tantas casas que frequentamos, que o pai, sem ideia do que fazer com a criatura que não sabe criar ou manejar, pergunta que horas é a aula da filha (ela está de férias). Ou quando demonstra não saber sequer o nome da mulher responsável por trazer a marmita para ela. Aquela tensão dramática revela não haver terror maior que o desamparo.

A filha reage a isso a seu jeito. É a resistência tomando forma desde o quintal, onde aparentemente nada brota e tudo se decompõe. Outro drible no espectador à espera de uma explosão. Como se a trama distorcesse Pirandello, ali nem tudo é o que se parece.

O antropólogo Claude Lévi-Strauss assim descreveu o cenário do Brasil que visitou antes de concluir seu Tristes Trópicos: “aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína”.

A definição, usada por Caetano Veloso na música “Fora da Ordem”, parece definir a dualidade sobre a qual Gabriela Amaral Almeida coloca a argamassa: o realizador que constrói edifícios na vida pública caminha entre destroços na vida privada, onde a relação é abortada sem ser sequer construída.

“A ruína, em si, não é negativa”, diz a diretora. “Às vezes coisas velhas precisam ruir para que coisas novas surjam. O ciclo de criação envolve a destruição. Mas aqui a construção e a ruína estão mais ligadas ao que se perde antes de chegar a lograr algo.”

Não deixa de ser um retrato do país. “Quando a gente estava começando a apontar a possibilidade de que novos atores de pensamento, de governança, de cidadania eram possíveis e ricos e eram multifacetados e levariam a ideia de a nação a um transbordamento de sentidos, essa noção rui, cai desmonta. No lugar há um retrocesso, não o novo. É como se a gente destruísse o que ainda é recém-descoberto e estava ainda em processo de construção e desse uns dez passos pra trás”.

Há esperanças?

O ato de resistência da protagonista e sua diretora é uma resposta em si. Com A Sombra do Pai, o cinema brasileiro se desdobra, se reorganiza e se impõe em um terreno de campo minado que muitos querem asfixiar pela brutalidade.

A valentia da personagem que enfrenta a morte, inclusive dos vivos, não deixa de ser um bom presságio. É tempo de renascer.

Matheus Pichonelli

Jornalista, cientista social e fã de cinema. Atualmente, escreve para o UOL e Yahoo!