Crítica: Bohemian Rhapsody

Crítica: Bohemian Rhapsody

Comportado até demais

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Se o rock já morreu, a causa do óbito deve-se em grande parte ao modo como o gênero musical, que nasceu para ser um grito de rebeldia contra o sistema, hoje já é parte integrante do establishment. A ponto de parcela considerável do público de um show de Roger Waters se incomodar com críticas do músico a um representante da extrema-direita. São “fãs” que agem mais como clientes, insatisfeitos por terem pagado caro em seu ingresso e ouvirem um discurso com o qual não concordam. É um risco que não terão de enfrentar ao assistir Bohemian Rhapsody.

A cinebiografia de Freddie Mercury foi feita sob medida para não transgredir, mesmo tendo como protagonista um homem declaradamente gay, de família árabe, viciado em drogas e portador do vírus HIV. E, mais importante, alguém que acima de tudo se orgulhava por não se acomodar em sua busca por ir além do convencional.

Marcado por imbróglios nos bastidores que levaram à demissão do diretor Bryan Singer e sua troca por Dexter Fletcher, Bohemian Rhapsody está o tempo todo claramente pisando em ovos. Embora não esconda os relacionamentos homossexuais de seu protagonista, reitera diversas vezes que o grande amor da vida dele teria sido a primeira esposa, Mary Austin (interpretada por Lucy Boyton).

Ao namorado, resta o papel de vilão e manipulador, responsável por desviá-lo do caminho correto. Álcool e drogas? Aparecem discretamente na tela. Supõe-se que o cantor tenha talvez contraído AIDS pelo ar, já que seu comportamento fora dos palcos no filme se aproxima ao de um monge tibetano.

O problema desta opção do longa em não ir fundo nas sombras de Mercury é que os conflitos do roteiro ficam murchos. A passagem de jovem funcionário do aeroporto de Heathrow para astro da música, por exemplo, vem sem nenhum obstáculo. A relação com os outros membros da banda é extremamente harmoniosa, mesmo as brigas são encaradas de forma leve e resolvidas rapidamente. O fantasma da solidão paira sobre o personagem, mas ainda é pouco para revelar os aspectos de sua alma que o levaram a ser uma das personalidades mais icônicas da história do rock.

Como de praxe em filmes sobre figuras reais marcantes, Rami Malek se transforma de forma assombrosa em Freddie Mercury. Tendo a chance de viver seu primeiro grande papel no cinema, após os prêmios pela série Mr. Robot, o ator não apenas reproduz os trejeitos do cantor à perfeição, como também injeta humor e alma à trama, principalmente nas cenas que mostram a composição de sucessos como a canção-título, surgida num momento de epifania durante o retiro do Queen numa fazenda.

A performance de Malek é uma chama que o roteiro não consegue fazer perdurar, ao passar apressadamente por quinze anos e tentar enquadrar o período em uma estrutura dramatúrgica básica. Assim, a ordem de alguns fatos é trocada sem cerimônia, como o lendário coro do público brasileiro no Maracanã durante “Love of My Life”, no Rock in Rio de 1985, colocada para o final dos anos 1970, de forma a servir de fundo para uma DR entre Mercury e a então esposa. O retorno dramático semanas antes do show no Live Aid, clímax de Bohemian Rhapsody, também foi bastante exagerado, já que na realidade a banda continuava se apresentando junta com frequência na época.

Claro que a força das músicas do Queen ofuscam alguns destes embaraços. Os acordes de hits como “Another One Bites The Dust”, “Somebody To Love” e “Radio Ga Ga” acessam direto a memória afetiva do público. Há boas piadas também, a principal delas na participação especial de Mike Myers, que aparece como um empresário cético sobre a possibilidade de adolescentes balançarem suas cabeças ao som de “Bohemian Rhapsody” – claramente descrevendo a cena de seu personagem em Quanto Mais Idiota Melhor.

Mesmo assim, o filme é uma oportunidade desperdiçada de ver o homem por trás da lenda e, quem sabe, trazer de volta algo de inocolasta à sua imagem, hoje já menos próxima a de um indivíduo do que a de uma marca comercial, palatável aos clientes que pagarão seus ingressos apenas para ter a certeza de ver suas crenças reafirmadas.

Diego Olivares

Crítico de cinema, roteirista e diretor. Pós-graduado em Jornalismo Cultural. Além do Cinematecando, é colunista do Yahoo! Brasil