Crítica: Corra!

Crítica: Corra!

Para os desavisados, Corra!, que estreia no Brasil em 18 de maio, faz cair por terra a ideia de que vivemos em um mundo “pós-racial”. Sabe-se que política, raça e demais temáticas sociais raramente tomam o centro de filmes de gênero. E quando tomam, tais exemplares geralmente não recebem a atenção merecida.

Recentemente, encontrei-me surpreendido com uma pequena obra exibida tarde da noite, em um canal a cabo, intitulada O Último Jantar, da diretora americana Stacey Title. O filme tinha em seu elenco Ron Perlman, Courtney B. Vance e uma jovem Cameron Diaz, partindo da história de um grupo de acadêmicos de esquerda bonvivants que recebem uma série de convidados de extrema direita para uma série de jantares. A reviravolta: matam os convidados conforme discordam mais e mais de seus pontos de vista. Lançado originalmente em 1995, o longa foi divulgado como uma comédia de humor-negro dedicada a agradar ao demográfico liberal, mas poucos esperavam que sua crítica se dedicasse também a seu público alvo, fomentando discussão entre os círculos que de fato o assistiram.

Apostando neste hibridismo corajoso entre filme B sem pretensões e crítica social afiada, o comediante Jordan Peele faz sua estreia como diretor com o aclamado Corra! Com produção da próspera Blumhouse, o terror segue a trilha do bem-sucedido Fragmentado, de M. Night Shyamalan, também obtendo imenso sucesso comercial em solo americano, consolidando Jordan Peele como o estreante mais rentável do cinema mundial.

Considerando o repertório de Peele, muitos puseram em cheque seu sucesso ao conseguir acertar com bom equilíbrio uma proposta tão ousada: Chris (Daniel Kaluuya), um rapaz negro, conhecerá a família de sua namorada Rose (Allison Williams), branca, e o casal vai à remota residência dos pais da jovem, onde tudo parece fora de lugar, algo que se torna ainda pior quando Chris se vê como o único negro no local em uma posição não-submissa. Seria uma atitude criminosa estragar qualquer detalhe a mais da trama de Corra!, no entanto, há muito a ser discutido quanto à sua finalidade.

O espectador branco consciente que espera sair ileso de críticas está seriamente enganado. A estreia de Peele já surpreende pela abordagem com a qual esboça seus antagonistas: não são os típicos supremacistas brancos, sob capuzes e com tochas em suas mãos; são aqueles vizinhos liberais, eleitores do Obama, satisfeitos sob a alcunha da desconstrução que tanto vangloriam. Já é raro ver um filme americano no qual o posto de vilão não é ocupado por monstros, fantasmas, aliens ou jihadistas. Mais surpreendente ainda é como Peele extrai suspense e até mesmo risos de uma situação tão delicada.

O sogro, Dean (um irreconhecível Bradley Whitford), instantaneamente lamenta para Chris a presença de seus empregados negros (Betty Gabriel e Marcus Henderson), pois não gosta de como isso aparenta. O cunhado Jeremy (Caleb Landry Jones) quer testemunhar a “besta” violenta que vive dentro do visitante. No “ápice”, em uma festa da família, uma série de convidados reagem a Chris em diversas escalas de constrangimento. Felizmente há o amigo de Chris, Rod Williams (o hilário Lil Rel Howery), para proporcionar um bem-vindo alívio cômico ao protagonista e o público.

Conhecendo o humor de Jordan Peele, é fato que o comediante, junto de seu parceiro habitual Keegan Michael-Key, é expert em traduzir os temas mais ferrenhos em entretenimento da melhor qualidade. Além disso, a precisão com a qual navega por tons e gêneros gritantemente distintos em seus esquetes aqui se repete. É nessa imprevisibilidade que o roteiro do próprio Peele, agora solo, encontra suas virtudes.

A qualquer um que tenha assistido ao trailer do longa e se viu sem reação, asseguro que o efeito é o mesmo com o produto final, e isso é positivo. Apoiando-se em uma arrepiante e distinta trilha original do estreante Michael Abels, Corra!, mais ainda que Fragmentado, vai fundo em sua estranheza, nunca cessando as surpresas e os jogos mentais, tornando-se inesquecível no processo. Apesar de algumas situações ilógicas e furos de conceito, a jornada culmina em um final simplesmente brilhante, destinado a dividir o panteão daqueles de clássicos como Psicose e Lobisomem Americano em Londres pela pura e simples genialidade.

O apuro estilístico de Peele também marca. Na canção Redbone, do músico Childish Gambino (aka Donald Glover, de Homem-Aranha: De Volta ao Lar), há o alerta: “stay woke!”. De acordo com entrevistas, Jordan Peele justifica o uso de tal faixa em uma das cenas iniciais para enfatizar o fato de que seu protagonista sabe, desde o começo, dos perigos que o aguardam. O longa, de atitude subversiva, já começa um passo à frente da concorrência.

Jordan Peele concebeu então um improvável novo clássico, que arrasa em sua riqueza temática mas também faz valer a ida ao cinema pelos seus (des)prazeres mais viscerais. Espera-se que Corra! acorde para o mundo uma nova geração de fãs de terror e cinema, que gostam de seus filmes com aquela dose saudável de verdade.

FICHA TÉCNICA
Direção: Jordan Peele
Roteiro: Jordan Peele
Elenco: Daniel Kaluuya, Allison Williams, Bradley Whitford, Lil Rel Howery, Betty Gabriel, Marcus Henderson, Catherine Keener, Caleb Landry-Jones, Lakeith Stanfield
Fotografia: Toby Oliver
Montagem: Gregory Plotkin
Trilha Sonora: Michael Abels
Duração: 104 min
Distribuição: Universal Pictures
Gênero: Terror / Suspense

Caio Lopes

Formado em Rádio, TV e Internet pela Faculdade Cásper Líbero (FCL). É redator no Cinematecando desde 2016.