Crítica: Green Book – O Guia

Crítica: Green Book – O Guia

Jornada para a transformação

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O início dos anos 1960 foi marcado pela efervescência da discussão sobre a igualdade racial nos EUA, com destaques para figuras como Martin Luther King, Malcolm X e para o movimento Panteras Negras. É neste cenário em que acontece a trama principal de Green Book – O Guia.

Dirigido por Peter Farrelly (Quem Quer Ficar com Mary?), o longa-metragem retrata a turnê que o pianista Don Shirley (Mahershala Ali) faz no interior dos EUA, na qual conta com o auxílio de Tony Lip (Viggo Mortensen), uma figura ímpar de Nova York, que topa trabalhar como motorista do artista após a boate na qual ele trabalhava ter sido fechada.

Ao mesmo tempo em que os dois parecem não ter se dado bem no início da relação profissional, a dinâmica entre eles melhora conforme a viagem e a turnê acontecem. Ah, sim: um dos papéis de Lip é garantir a segurança de Shirley por meio do Green Book, guia que contém informações sobre locais seguros para pessoas negras fazerem refeições e dormirem no interior do país à época.

A fotografia beira com o minimalismo e serve como elemento para evidenciar os caráteres da dupla de protagonistas: Tony Lip faz o tipo grosseiro, mas com traços de bondade, que supera a baixa formação intelectual com irreverência e a manjada sabedoria das ruas. Já Don Shirley faz da erudição a sua principal característica, que é acentuada por meio de seus gestos econômicos – em uma questão de perspectiva cronológica, a sua fleuma poderia ser vista à época como traços de quem tenta ocultar a homossexualidade.

A convivência em princípio profissional evolui para relação de amizade graças à afinidade criada entre eles, ressaltada em situações díspares. Ao passo que Tony Lip livra Don Shirley de roubadas diversas, invariavelmente originadas pelo caráter racista do povo do interiorzão dos EUA, o pianista ajuda Lip em situações intelectuais e afetivas, como nas redações de cartas para Dolores (Linda Cardellini), e no trato diplomático do musicista em relação a qualquer pessoa: ainda que Lip estranhe no início, ele passa a entender e a até admirar com o passar do tempo.

A história tem pontos questionáveis, como a mudança comportamental de Tony Lip, um cara notoriamente racista no início para se tornar uma espécie de “desconstruidão” do seu tempo. Todavia, há de se elogiar o trabalho convincente de Mortensen e a atuação irretocável de Ali, que em nada lembra Juan, personagem de Moonlight – Sob a Luz do Luar, pelo qual levou o Oscar de melhor ator coadjuvante em 2017.

Ao considerar-se o lado técnico, Green Book – O Guia tem méritos incontáveis que o colocariam na lista de melhores filmes do ano, mas os seus principais problemas estão atrás das câmeras. Farrelly costumava exibir, como se fosse uma brincadeira, o seu pênis em sets de filmes anteriores – OK, ele se desculpou pelo comportamento anteriormente adotado, mas ficou a mancha.

Ainda, Nick Vallelonga, filho de Tony Lip e um dos roteiristas do longa, deu uma derrapada surreal no passado – por ironia do destino, de caráter racista. Em 2015, ele publicou, em sua conta no microblog Twitter, declaração de cunho racista contra muçulmanos, ao responder para o atual presidente dos EUA, Donald Trump, que eles haviam comemorado a queda das Torres Gêmeas no fatídico 11 de setembro de 2001. No entanto, após a publicação ter vindo à tona, Vallelonga desculpou-se pela afirmação e pelo teor das afirmações – para completar, Mahershala Ali é muçulmano.

Por fim, é necessário ressaltar os acertos de Green Book – O Guia, em especial pelos trabalhos desempenhados por Ali e Mortensen. Contudo, em tempos de combate a comportamentos reprováveis de cunhos sexual, racial e discriminatório contra a comunidade LGBT, é impossível fechar os olhos para os aspectos problemáticos relativos à equipe do filme.

Amauri Eugênio Jr

Jornalista. Cinéfilo, crítico cultural wannabe e interessado por assuntos relativos a esportes, direitos humanos e minorias. Foi redator de cinema do Yahoo por um ano.