Crítica: Uma Questão Pessoal
Este filme faz parte da programação oficial da 41ªMostra Internacional de Cinema em São Paulo.
Em 2013, tive meu primeiro contato com o trabalho dos irmãos Taviani, com o inesquecível César Deve Morrer. Tratava-se de uma amálgama encantadora entre realidade e ficção, na qual prisioneiros encenavam entre si a peça Júlio César, de Shakespeare, com paralelos às próprias relações de poder entre os encarcerados. Quatro anos depois, fico feliz em ver que a sensibilidade clássica dos Taviani, pontuada por vislumbres experimentais, continua intacta, com o excepcional Uma Questão Pessoal.
Exibido no último Festival de Toronto, é de se espantar quão pouco falado o longa é. Já em sua transição inicial entre presente e passado, é visível o esmero artístico incomum que Paolo Taviani, desta vez como diretor solo, emprega em seu filme. Vemos um casarão, em meio a campos enevoados e pálidos, gradualmente ganhando cores vibrantes e uma luz calorosa, enquanto a famosa Over the Rainbow cresce. É uma clara homenagem à transformação visual que vemos no início de O Mágico de Oz, mas o truque, que foi também acertado em César, faz saltar aos olhos o nível técnico da produção. Parece piegas, e talvez seja mesmo: é, no entanto, feito com uma economia maestrosa.
A história é simples mas contada com gosto, trazendo à memória a Hollywood da década de 40. Milton (Luca Marinelli) é um jovem partisano que, em meio à violência fascista na Itália, decide investigar o paradeiro de sua antiga amante, Fulvia (Valentina Bellè). A cada lugar, uma memória dos bons tempos que passou com esta e seu melhor amigo, Giorgio (Lorenzo Richelmy, Marco Polo). Quando descobre que Fulvia e Georgio possivelmente mantinham um affair, Milton se dispõe a procurar o amigo e esclarecer suas dúvidas, porém o sujeito, partisano de outra brigada, foi capturado por soldados fascistas. Milton então parte em busca de um refém para trocar pelo amigo.
Marinelli carrega o enredo em suas costas, embarcando na jornada pessoal de Milton com uma interpretação que, mesmo não sendo material para prêmios, tem clareza e comunica bem as emoções angustiadas do jovem. Há também outros personagens, todos fazendo aparições pontuais. Vemos bem pouco de Fulvia e Giorgio para realmente conhecê-los, mas a narrativa também não pede por um maior desenvolvimento dos dois. Sua principal história é a de um jovem que, colocando seu romantismo de lado, descobre a vontade de viver e a felicidade por sobreviver a tempos tão difíceis.
Tempos que também são muitíssimo bem ilustrados pelas narrativas menores que o roteiro dos Taviani, adaptação do livro de Beppe Finoglio, desenvolve. Uma garotinha descansa em meio aos cadáveres da mãe e outros familiares, para, em intervalos, levantar e tomar um copo de água; um soldado fascista acredita ser um baterista de jazz, fazendo um air drum interminável; um superior dos Camisas Negras demonstra clara hesitação ao ordenar a execução de um jovem mensageiro; e outros. Alguns desses fios narrativos não se conectam à trama principal, mas servem ao propósito de dar dimensão àquele lugar, naquele momento.
Apesar do contexto sombrio, os Taviani ainda encontram espaço para momentos de humor negro acertados, tornando a busca de Milton em uma espécie de comédia de erros, o que torna sua conclusão, que alguns podem considerar um anticlímax, extremamente catártica. Por essa e outras, a direção de Paolo Taviani merece elogios, não só pela primazia narrativa e estética, mas também por mesclar tons de maneira tão orgânica.
Não bastasse a visão de seu realizador, Uma Questão Pessoal conta com uma produção impressionante. A fotografia de Simone Zampagni navega pelos diferentes períodos da história com impacto, também acertando nos calculados movimentos de câmera, atribuindo às cenas uma fluidez deliciosa de se ver. Já a montagem de Roberto Perpignani se ajusta ao olhar clássico dos Taviani, favorecendo a compreensão do público ao deixar cada plano respirar, demonstrando uma clareza de linguagem até nos momentos mais agitados. Por fim, a música de Giuliano Taviani e Carmelo Varia é uma mistureba boa, revestindo o icônico tema de O Mágico de Oz com tons melancólicos e, em um momento marcante, explodindo na percussão acelerada do jazz.
Sem essa faceta experimental dos Taviani e sua fiel equipe, Uma Questão Pessoal poderia ter pertencido, facilmente, ao cinema clássico. E enquanto a formalidade, por outro lado, costuma justamente deixar tantas obras com um quê artificial, os Taviani, mestres que são, enfeitiçam o público com seu domínio da linguagem cinematográfica.
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