42ª Mostra – Crítica: O Rosto

42ª Mostra – Crítica: O Rosto

Longe das vistas de Deus

o rosto critica

As imagens de O Rosto têm uma estética esquisita. A fotografia é distorcida, com foco em algum ponto central enquanto o entorno está embaçado, como se a câmera fosse incapaz de capturar tudo que está diante dela, mas apenas parte da cena. É uma visão limitada tanto quanto a dos habitantes da pequena vila polonesa que serve de cenário para o filme da diretora Malgorzata Szumowska, vencedor do Grande Prêmio do Júri no Festival de Berlim 2018.

Nesta comunidade reina o preconceito, a ponto de um dos personagens ainda achar normal contar piadas como “Um muçulmano, um judeu e um negro se jogam de um prédio. Quem ganha? A sociedade”. O protagonista Jacek (Mateusz Kosciukiewicz), com seus cabelos longos e gosto por escutar bandas de heavy metal, é um peixe fora d’água ali. Mesmo assim, tem seu quinhão de felicidade, representado pelo noivado com Dagmara (Malgorzata Gorol) e o serviço em uma ambiciosa obra local, a construção da maior estátua de Cristo do mundo, planejada para superar até mesmo a presente no Rio de Janeiro.

Porém, um grave acidente de trabalho muda a vida de Jacek. Resgatado com vida praticamente por milagre, ele passa por um transplante facial e se torna um homem desfigurado. O acontecimento acaba por revelar a verdadeira face, com o perdão do trocadilho, daqueles que vivem ao seu redor. Desde a noiva que passa a rejeitá-lo, até o circo midiático promovido pela família, há ali muito pouco dos conceitos cristãos que uma sociedade marcada pela forte presença religiosa diz pregar.

A Polônia é o maior reduto católico do leste europeu. O papa João Paulo II, por exemplo, nasceu no país. Porém, nos últimos anos veio à tona uma série de denúncias sobre abusos e outros comportamento moralmente questionáveis de padres e lideranças da Igreja local. O cinema polonês tem estado atento a isso, e, além do O Rosto, há exemplos recentes de filmes que fazem referência ao assunto, como Rosas Selvagens e Kler, sucesso estrondoso de bilheteria por lá e ainda inédito no Brasil.

A exemplo do que vem acontecendo em diversas partes do mundo, a sensação é de um desentendimento generalizado entre os habitantes, como se a derrocada da espiritualidade e de valores como a empatia refletisse num acirramento de ânimos entre os cidadãos. Não à toa, muitas das cenas de O Rosto terminam com personagens em confronto.

Na imagem de um Cristo gigantesco que olha para outra direção, e não para a cidade que o construiu, há a mensagem que já estamos por nossa própria conta e risco. Salve-se quem puder.

Diego Olivares

Crítico de cinema, roteirista e diretor. Pós-graduado em Jornalismo Cultural. Além do Cinematecando, é colunista do Yahoo! Brasil