Crítica: Chacrinha – O Velho Guerreiro
O homem por trás do mito
É inegável que a trajetória de José Abelardo Barbosa (1917-1988), o eterno Chacrinha, coexiste com a história do Brasil em pleno século XX. Ao mesmo tempo em que ele era um fenômeno da comunicação, a começar pelo seu famoso bordão “Quem não se comunica se trumbica!”, e alcançava como poucos os setores mais variados da sociedade.
Seja na época em que trabalhou no rádio, ou após ter mudado de ares e se aventurado na televisão, Chacrinha tinha veia em certa medida anárquica, que chocaria hoje a ala mais conservadora da sociedade e preocupada com “a moral, os bons costumes e os valores da família tradicional”.
Não por acaso, Chacrinha era capaz de deixar em pé os cabelos de grupos conservadores, seja por meio da sua irreverência inata, presença das chacretes e de participações de figuras consideradas subversivas durante a ditadura (1964-1981), com direito à presença, em pleno horário nobre, da mãe de santo Cacilda de Assis e de seu exu, Seu Sete da Lira. Essa passagem teve verniz cômico no filme, mas rendeu uma dor de cabeça das mais significativas para a Rede Globo, emissora na qual o comunicador trabalhava à época – ditadura, afinal de contas.
Todavia, o anfitrião cômico e bonachão do rádio, e posterior e particularmente, da televisão, mostrava ter outra face bem diferente atrás das câmeras. E é esta a perspectiva mostrada em Chacrinha: O Velho Guerreiro, longa-metragem dirigido por Andrucha Waddington, que mergulha na obra e na vida da lenda do entretenimento no Brasil.
A caminhada de Chacrinha é mostrada desde os tempos em que ele já tinha uma legião de fãs na época de ouro do rádio. A versão jovem dele, interpretada por Eduardo Sterblitch, mostra o seu lado obstinado, que dá as caras logo quando ele abandona o curso de medicina e decide tornar-se locutor, e a formação das suas duas personas – a profissional e a humana -, o que é evidenciado pela relação dele com sua esposa, Jurema – interpretada por Amanda Grimaldi e Carla Ribas a partir dos 50 anos.
A versão mais velha do “velho guerreiro”, encenada por Stepan Nercessian, intensifica a dualidade entre o comunicador e o ser humano. Para começar, o envolvimento cada vez maior com o trabalho o tornou mais e mais distante de sua família a ponto de não acompanhar o crescimento de seus filhos – Jorge (Rodrigo Pandolfo), Leleco e Nanato (ambos interpretados por Pablo Sanábio). Achou que ele reduziria o ritmo de trabalho para estar mais próximo aos filhos? Achou errado, amigo: ele os colocou para trabalhar consigo, o que abalou sua relação com Oswaldo (Gustavo Machado/Antonio Grassi), seu amigo e braço-direito na vida profissional.
Ainda, o lado workaholic se juntou à persona humana após o acidente que deixou Nanato tetraplégico, pouco após o jovem ficar noivo da cantora Wanderléa. Chacrinha, de acordo com a abordagem feita no filme, mergulhou de vez no trabalho para custear o tratamento do filho.
Outro caráter complexo da personalidade de Abelardo Barbosa era o modo como ele tratava as pessoas mais próximas: se ele parecia ser adepto da liberdade irrestrita na frente das câmeras, o lado disciplinador dava as caras nos bastidores. Se ele tinha estilo linha-dura com os filhos, ele tratava Elke Maravilha (Gianne Albertoni) como se fosse sua filha e de modo supercarinhoso. Se ele tinha relação quase protocolar com Jurema, a proximidade desenvolvida com a cantora Clara Nunes (Laila Garin) gerou fortes rumores sobre uma relação extraconjugal entre os dois.
Vale destacar também a relação conturbada, marcada pela admiração mútua e pelos desentendimentos diversos, entre o apresentador e Boni (Thelmo Fernandes), diretor da Globo e responsável pelo programa, que é também produtor associado do filme e, de acordo com Waddington, teve participação ímpar para a construção da obra.
“Ele [Boni] ajudou muito a entender como era o backstage. Ele teve um encontro com Thelmo [Fernandes, ator que o interpreta], quando eles foram almoçar juntos antes de começarmos a filmar. Boni visitou a gente algumas vezes no set e foi a grande fonte para falar como era o Chacrinha da televisão e dos bastidores, e como era a relação dele com os artistas e entre eles mesmos”, explicou o diretor, em resposta a questionamento feito pelo Cinematecando, durante coletiva de imprensa, sobre a participação de Boni no longa e na construção do personagem de Fernandes.
Os pontos positivos de Chacrinha: O Velho Guerreiro são as atuações convincente dos atores e do cuidado estético, que abrange o figurino, a fotografia condizente com as épocas retratadas e a trilha sonora, com que mergulhou no som daquele tempo e tem como easter eggs participações de Criolo e de Luan Santana. Ainda assim, a narrativa parece ter ritmo de obra televisiva em boa parte do tempo, o que a faz perder fôlego não raras vezes. Todavia, o filme contempla o legado de Chacrinha.