Crítica: Graças a Deus
Quando a Igreja peca
À medida em que casos de abusos sexuais de menores cometidos por padres católicos ficam mais frequentes no noticiário mundial, cresce o número de produções audiovisuais sobre o assunto. O chileno O Clube, de Pablo Larraín, e o norte-americano Spotlight – Segredos Revelados, vencedor do Oscar em 2016, são dois dos exemplos mais conhecidos. O primeiro foca no isolamento de padres acusados desses e outros crimes, enquanto o mais famoso acompanha a investigação de jornalistas para publicar uma série de reportagens a respeito de atos cometidos em Boston.
Já Graças a Deus, de François Ozon, se aprofunda nas vítimas das ações, um grupo de adultos que, cerca de três décadas depois, unem forças para contar ao mundo a respeito das violências sofridas ainda enquanto eram crianças.
Ozon parte de uma história real acontecida na França para construir o roteiro de seu filme. A trama começa com Alexandre (Melvil Poupaud), sujeito bem-sucedido profissionalmente, de casamento estável e pai de cinco crianças, que ainda carrega o trauma de infância, aceso novamente ao descobrir que o padre Preynant, seu abusador, continua trabalhando próximo a menores de idade. Ainda hoje um frequentador assíduo de missas e católico praticante, ele vai em busca de ao menos um pedido de desculpas formal por parte da Igreja.
Nesta primeira parte, Graças a Deus utiliza repetidas vezes uma mesma estrutura: correspondências lidas em off, com imagens do dia a dia de Alexandre, enquanto ele busca explicações com o cardeal Philippe Barbarin (François Marthouret), arcebispo de Lyon, sua cidade. O recurso narrativo escolhido por Ozon serve para demonstrar o vai e vem destas mensagens, no qual fica clara a intenção do representante da Igreja em ir protelando uma solução real ao caso, tentando evitar um escândalo para a imagem da instituição.
O cinismo de Barbarin o transforma num dos personagens mais vis do cinema recente. É preciso muita cara de pau para pedir que a palavra “pedófilo” seja substituída por “pedossexual”, já que o amor às crianças é um ensinamento de Deus, com alega numa das cenas. Ou para comemorar que “graças a Deus” tais crimes já prescreveram, na fala de onde o longa tira seu título.
Além de Alexandre, outras vítimas se tornam protagonistas do longa. Conforme seus cotidianos e personalidades vão sendo revelados, é possível vislumbrar como os abusos tiveram consequências que ainda reverberam décadas depois, em suas relações familiares, auto-estima e até mesmo na saúde.
É neste ponto que o filme se torna ainda mais humano, com toda a fragilidade desses indivíduos expostas, principalmente nos dramas de Emmanuel, interpretado por um Swann Arlaud sempre a ponto de se espatifar em cena.
Ainda assim, Graças a Deus não pode ser rotulado como um filme “anti-católico”, mesmo que um de seus retratados, François (Denis Ménochet), seja um ateu convicto. Ozon evita a virulência no discurso, alinhando-se à tese de que o crime dos padres não representam a totalidade da Igreja, e justamente por isso deveriam ser combatidos de forma mais eficiente, a começar pela própria instituição. Afinal, expurgar os pecados do passado e se abrir para um novo tempo é também um ato de fé.