OPINIÃO: Cinquenta Tons de Cinza não é sobre sadomasoquismo

OPINIÃO: Cinquenta Tons de Cinza não é sobre sadomasoquismo

O texto a seguir é de opinião. Opinião essa que não necessariamente é a de todos dentro do Cinematecando. Independente do que você pensa sobre o assunto, respeite tanto quem gosta de 50 Tons de Cinza como quem não gosta.

Quando falamos de pornografia e procuramos por isso na internet, encontramos um conteúdo feito quase predominantemente para o público masculino. Talvez porque, na cabeça das pessoas, a masturbação feminina não seja vista como uma forma de autoconhecimento, mas ainda como um tabu. Cinquenta Tons de Cinza, trilogia escrita por E. L. James, apareceu com a proposta de ser um livro erótico voltado para as mulheres e não tem como negar: isso chamou bastante a atenção do público. Mas o problema é que, apesar do livro tentar fazer isso, mostrando que não há problema algum em querer ser submissa, há outros aspectos que transformam o romance entre Christian Grey e Anastasia Steele em algo problemático. Cinquenta Tons de Cinza poderia ser um livro sobre uma garota de atitude que decidiu se deitar com o homem que queria e aceitou ser dominada, mas a história é mais sobre como Christian Grey resolveu viver a vida de Anastasia, tomar decisões por ela e, como se não bastasse, stalkear a garota em todos os lugares.

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Vamos à história: Anastasia Steele, uma jovem descrita como desastrada por natureza e comum aos próprios olhos, conhece Christian Grey durante uma entrevista e se envolve com o empresário. Eu acho que não preciso dizer que Grey é apresentado como um homem maravilhoso, rico, cheio de confiança, capaz de conseguir qualquer mulher. Em certo momento do livro, Anastasia e Christian começam a manter relações sexuais. E, mesmo que o empresário só queira sexo casual com Ana até então, ele se acha no direito de fazer pedidos completamente fora do comum. Antes de qualquer coisa, eu não estou falando mal de sadomasoquismo nem estou querendo dizer que Anastasia está errada em ser submissa. Por isso, vamos lá.

QUAL A DIFERENÇA ENTRE SADOMASOQUISMO E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA?

Algumas pessoas ainda confundem sadomasoquismo com violência, mas é algo completamente diferente. Sadomasoquismo é sobre submissão, dominação e fetichismo. Tudo feito com muita sanidade e segurança. Superficialmente, alguns podem acreditar que sadomasoquismo tem relação apenas com tapas e chicotadas, mas, por trás disso, existe o consenso de ambas as partes. Ou seja: o casal está ciente e os dois estão dispostos a isso. O dominador sente prazer em dominar, e o submisso sente prazer em ser submisso. Já em qualquer tipo de violência, não há consentimento da vítima. Em um relacionamento abusivo, a pessoa que apanha sofre e não consente. A diferença é óbvia, mas é sempre bom deixar claro.

A LINHA TÊNUE QUE FEZ CHRISTIAN GREY PASSAR DE DOMINADOR SEXUAL PARA DOMINADOR DA VIDA PESSOAL DE ANASTASIA

Em certo momento do livro, Christian Grey mostra para Anastasia uma lista de regras que ela deve cumprir na posição de submissa. Mas a verdade é que essas regras vão muito além de pedidos sexuais, elas envolvem a vida pessoal da protagonista. Algumas dessas regras são: “A submissa assegurará completar o mínimo de sete horas por noite quando não estiver com o Dominador”; “a submissa não comerá nada entre as refeições, com exceção de frutas”; “a submissa se manterá sempre limpa e depilada e visitará um salão de beleza de escolha do Dominador, submetendo-se aos tratamentos estéticos que o Dominador julgar adequados”; “a submissa não excederá na bebida, etc”, “a submissa não se envolverá em quaisquer relações sexuais com outra pessoa senão o Dominador”. Além disso, o filme 50 Tons Mais Escuros está repleto de diálogos como: “Não quero ninguém olhando para o que é meu” (frase falada por Christian Grey), exatamente como se Ana fosse propriedade do empresário. O pior de tudo: o comportamento doentio de Grey é justificado com um trauma de infância. E isso quer dizer basicamente o seguinte: se a pessoa tem um trauma, então todas as atrocidades que ela faz devem ser compreendidas. Óbvio que Anastasia, no papel de mulher inocente, atua como heroína e isso a torna uma personagem que beira o surreal. Quem em sã consciência assinaria um contrato onde aceita ser propriedade de alguém? Mas é isso que a escritora vende em 50 Tons de Cinza, que passa longe de ser um livro sobre sadomasoquismo, caso esse seja seu interesse na história. É mais um manual do que você não deve aceitar dentro de um relacionamento.

Na história, a violência e a vontade de dominar apareceram após o passado complicado de Christian Grey, como eu já disse acima. O controle e o stalk sem explicação na vida de Anastasia, segundo a autora, não é loucura ou sentimento de posse, mas sim preocupação. E o ciúme? As frases que diminuem a protagonista no papel de uma mera propriedade? Ah, isso é considerado amor. Da maneira como é retratado, corre-se o risco dos leitores da trama também acreditarem em tudo aquilo sem ver problemas no jeito que Christian cerca a vida de Anastasia. Até o trabalho que a garota consegue não foi por mérito dela: Christian mexe os pauzinhos e coloca a “namorada” na empresa em que ele gostaria que ela trabalhasse. Escutem, mulheres, vocês não precisam de um relacionamento assim.

Em 50 Tons Mais Escuros, até nos deparamos com uma Anastasia que solta algumas frases empoderadas e tenta ter voz ativa. Não é que a jovem não ache estranho o comportamento do namorado, que tem um arquivo bizarro com fotos e informações de cada mulher que ele acredita que tem potencial para se tornar sua subordinada. É que Anastasia está convicta de que pode mudar o comportamento dele como se ela tivesse essa obrigação ou como se o amor pudesse salvar tudo. Ela desconfia, por vezes não aceita, mas no fim acaba concordando com as exigências de Grey e sua vida perde sentido sem ele. E mesmo no terceiro livro, 50 Tons de Liberdade, com a protagonista supostamente mais madura, a história não passa do que anteriormente já nos foi apresentado.

Resumidamente, como se eu já não tivesse escrito demais sobre o assunto: 50 Tons de Cinza transforma um personagem manipulador em um homem sexy e atraente (como se a beleza fosse o fator mais importante em alguém), que decide, por contra própria, resolver a vida de Ana e aparecer nos lugares sem ser convidado. Christian é descrito como gostoso e atraente, mas, e se ele não fosse tudo isso? Mesmo assim a protagonista aguentaria esse romance? Por ser rico, o empresário automaticamente se transforma também em um ótimo partido, com um milhão de mulheres lutando para estar no posto que Anastasia conseguiu. Então, é assim: beleza e status social, segundo a autora, valem mais do que um relacionamento saudável.  50 Tons de Cinza não é uma revolução: a história mostra exatamente o papel que o homem e a mulher representam atualmente na sociedade, mesmo com um movimento feminista muito forte lutando pelos diretos das mulheres. A trilogia de E. L. James poderia ser muito mais, só que não é. Infelizmente.

Observação: O texto não tem a função de menosprezar ou de ridicularizar quem gosta da trilogia 50 Tons de Cinza. Ler é importante, independente do estilo de literatura. Então continue lendo o que você gosta. Essa é só a visão particular da autora do texto, que não necessariamente é a visão de todos da equipe Cinematecando.

Leia a crítica de Cinquenta Tons Mais Escuros aqui.

Jaquelini Cornachioni

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