Coluna do Matheus: ‘Eleições’ ajuda a entender impasses políticos no Brasil

Coluna do Matheus: ‘Eleições’ ajuda a entender impasses políticos no Brasil

Assisti ao documentário Eleições, de Alice Riff, ainda sob o impacto do massacre na Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano, onde dois ex-alunos assassinaram oito pessoas, entre estudantes e funcionários, na quarta-feira, dia 13, e se mataram em seguida.

Os paralelos entre as duas escolas são mínimos, mas gritantes: no contexto estão duas instituições públicas de ensino, ambas inseridas, e não à margem, de boa parte dos conflitos e dispositivos políticos do mundo para além da sala de aula.

O filme acompanha as eleições, para o grêmio estudantil, na Escola Estadual Doutor Alarico Silveira, no bairro da Barra Funda, em São Paulo. O processo acontece logo após o assassinato, no Rio de Janeiro, da vereadora Marielle Franco, ocorrido exatamente um ano antes da estreia nos cinemas.

Esse não é um mero detalhe, como pode ser observado na imagem da militante exposta durante uma das muitas discussões entre alunos registrada pela cineasta.

Tal conexão não deixa de ser simbólica. Mostra como os discursos e violências contra os corpos fora dali moldam, afetam e contaminam os discursos e estratégias de sobrevivência também no ambiente escolar; este ambiente, afinal, não é um corpo estranho ao conjunto da sociedade, mas parte dele.

Nesse sentido, a quebra da cápsula de confiança observada de modo trágico em Suzano é apenas, e não somente, o fenômeno mais aparente da inexistência dos muros de proteção para além do material concreto das escolas, vigiadas ou não.

Se as mortes em Suzano têm no contexto a escalada do ódio, alavancado nos fóruns eletrônicos, e do apelo à flexibilização do acesso às armas em um país já destroçado pela violência, na escola da Barra Funda não há movimento, de corpos e discursos, que não dialogue diretamente com os conflitos observados nas ruas, nas instâncias de poder, nas relações familiares, nas redes sociais.

Ao derrubar as barreiras imaginárias entre escola e o chamado mundo real, Alice Riff ajuda a derrubar muitos dos clichês que se colam ao senso comum sobre o ambiente escolar. Entre eles, o de que se trata de um laboratório do futuro, no qual seus integrantes permanecem em estado de suspensão e simulação de conflitos à espera do mata-mata da vida real (as relações adultas, o mercado de trabalho, a carteirinha oficial de agentes da história, etc).

Como se os estudantes, que sentem, sofrem, agem e reagem a demandas urgentes de seu tempo, não estivessem inseridos até a medula na mais concreta realidade, reforçada, no caso de uma escola estadual, pela falta e pela ausência (de material, de perspectiva, de orientação, de interesse e de espaço adequado para elaboração, se não da solução, da possibilidade de reconstrução de novas realidades).

Nada muito diferente, como se nota, das escolas de qualquer outro tempo. Com a diferença de que agora ouvir funk no pátio é uma demanda política acompanhada por repórteres de bastidores (vulgo fofoca) de um canal do YouTube.

Em uma das cenas, duas alunas jogam basquete em um momento de aparente descontração; no arremesso, a bola bate em uma tabela sem aro, como se a própria realidade exigisse, pela falta e ocupação de espaços, um exercício de imaginação em si.

É nesse ambiente que ocorre uma acirrada eleição para o grêmio estudantil.

O momento é uma convergência improvável de desejos: exige mobilização coletiva no momento em que planos individuais (vestibular, desempenho, curso preparatório, escolha da carreira e da profissão) começam a se constituir e a se sobrepor. O resultado é um conjunto de conflitos internos em fricção com os conflitos externos e muitas vezes interditados para o diálogo. Quem nunca?

Na disputa é possível visualizar a formação de grupos que se assemelham a arquétipos de qualquer embate do chamado mundo adulto.

Na disputa está uma chapa formada por feministas, uma chapa LGBT, outra ligada a grupos religiosos e outra dos meninos do fundão, que aqui podem ser identificados como o grupo hegemônico – embora com menos apelo eleitoral e menor capacidade de mobilização de afetos, seus integrantes correm menos riscos de bullying e violência; pelo contrário, são eles quem, possivelmente, mais recorrem à prática do constrangimento a tudo o que soe fora do padrão.

A câmera acompanha as reuniões e definições de estratégias de cada um desses grupos, e elas mostram como as diferenças começam a se bifurcar, já naquele momento, para provavelmente nunca mais se encontrar ao longo da vida. Não é que, dali em diante, perdemos de vista nossos denominadores comuns; é que eles só existem nas lembranças esburacadas da nostalgia.

Uma diferença central entre os grupos, por exemplo, se resume na própria organização das chapas: umas se definem como horizontais, e rejeitam a ideia de obedecer a um líder ou figura central, embora, na prática, o protagonismo seja uma cadeira que não aceita espaço vazio; no caso do grupo cristão, a hierarquia e o centralismo não são apenas aceitos; são também desejados e abraçados. O líder, no caso é quem fala e age “em nome de”, e num dos muitos flagrantes da câmera fica clara a dificuldade de ser confrontado por uma integrante (subordinada?) da própria equipe.

Ainda assim, é nesse grupo, que rejeita a interpretação daquele microcosmos a partir da ideia de representação e identidades (como se reproduzissem, ali, o senso comum de que todos são iguais, humanos e não existissem assimetrias entre homens e mulheres, brancos e negros, gays e héteros), que estrangeiros parecem encontrar um canal de acolhimento. Uma espécie de braço-direito do líder do grupo, talvez o mais inteligente e articulado entre os personagens do filme, é uma descendente de paraguaios.

Entre os grupos rivais, não há política de boa vizinhança. Em um dos momentos mais tensos e constrangedores do filme, representantes das chapas se enfrentam em um debate eleitoral no qual parece estar em disputa o triunfo de quem lacra mais, quem mais mobiliza os simpatizantes da plateia a gritarem mais, e quem mais tem capacidade de apontar contradições do grupo rival. (Nada muito diferente, aliás, do foguetório e da mise-en-scene das sessões sobre temas-chave no Congresso, a começar pelo impeachment).

Como se tornou comum entre políticos profissionais, quanto mais alta a gritaria, mais evidente a ausência de propostas reais para questões urgentes; é como se a disputa envolvesse não um projeto político, mas a afirmação de uma identidade. Não é pouco quando as chances de sobrevivência no país diferem entre os mesmos grupos e identidades, mas é também sintoma claro de uma crise política permanente.

Quem chegou à vida adulta romantizando a época de suspiros e intensidades em sala de aula tem no filme uma desconstrução sutil da suposta ingenuidade juvenil; como raposas políticas que adoramos olhar como seres extraterrestres que por acaso desembarcaram em Brasília, ninguém ali parece imune à tentação de praticar pequenas ardilosidades para se eleger: propaganda eleitoral antecipada, demonização de adversários, uso e destruição indevida de símbolos e apoio implícito (e nada republicano) de agentes externos, como pastores de olho no rebanho que começa a se organizar ali e já se apresentam como força política.

A tentativa de acompanhar a organização de uma eleição no ambiente escolar é o testemunho, no fim das contas, de uma grande polifonia de desejos sem qualquer harmonia.

Há futuro nisso tudo?

Há, mostra o documentário, mas ele é incerto, escorregadio e permeado de contradições.

Antes disso, porém, existe um presente, e corpos que agem e reagem conforme a temperatura do mundo ao qual são e estão inseridos – não como uma solução utópica, cujo peso ninguém pode suportar, mas como parte de uma realidade vibrante, complexa, muitas vezes ríspida e em estado de confusão, ansiedades e sofrimento. Ainda assim, rica de encontros, de sonhos – e, claro, de braços estendidos para a amizade.

Matheus Pichonelli

Jornalista, cientista social e fã de cinema. Atualmente, escreve para o UOL e Yahoo!