Crítica: Alias Grace (1ª temporada)
Um dos maiores nomes femininos da escrita parece estar ganhando ainda mais prestígio nos meios audiovisuais. A escritora Margaret Atwood, além de responsável pela escrita do romance “O Conto da Aia”, obra que originou a recente e aclamada série The Handmaid’s Tale da Hulu, também escreveu o livro “Alias Grace”, que inspirou a nova minissérie homônima distribuída pela Netflix. Após conferir aos 6 episódios (de 45 minutos cada), posso afirmar que Atwood tem o dom de inspirar diamantes televisivos fora do padrão.
Com leves influências de Downton Abbey, a britânica minissérie Alias Grace é profunda, passional, verossímil, inteligente e recheada de belas paisagens em planos abertos. Tudo isso já seria além de uma receita básica para um bom seriado, mas a ousadia da construção/atuação da protagonista, a fotografia naturalista, a harmoniosa direção, e o fato de ser baseado em fatos reais tornam seu conteúdo algo precioso e singular, deixando a minissérie pronta para entrar no coração de muitos. Caso haja justiça com boas obras da televisão que merecem atenção, seu reconhecimento que não deve demorar muito a vir.
Grace Marks (Sarah Gadon) é uma jovem irlandesa de classe média baixa que decide tentar a vida no Canadá. Contratada para trabalhar como empregada doméstica na casa de Thomas Kinnear (Paul Gross), ela é condenada à prisão perpétua pelo assassinato brutal do seu patrão e da governanta da casa, Nancy Montgomery (Anna Paquin). Passados 16 anos desde o encarceramento da imigrante, o psiquiatra Simon Jordan (Edward Holcroft) tenta decidir se Grace deve ser perdoada mediante a alegação de insanidade, buscando descobrir a verdade sobre o caso.
Desempenhando um papel difícil no lugar de uma mulher com traumas, Sarah Gadon é a grande chave da série. Variedade de expressões não falta, e a atriz cumpre com suas funções espetacularmente. Gadon alcança rapidamente as extremidades da preocupação e alívio de Grace, seja através de simples sorrisos, semblantes tristonhos ou expressões de espanto/surpresa – além de toda a psique complicada da personagem transmitida pela maior qualidade da atriz: seu olhar. Os coadjuvantes também fazem sua parte, mas em sua maioria são os personagens que falam por si mesmos, quase que sem precisar dos atores (claramente um exagero).
É no processo de “fertilização” dos personagens que a série se sai bem. Podem não parecer tão bem apresentados, mas são bem desenvolvidos, com medo, dúvidas, objetivos, e humores contrastantes. Principalmente Mary Whitney, por seu carisma, seu sangue fervoroso de rebeldia e sua amizade verdadeira, fazem sua personagem ser querida. Assim como com Grace, o personagem de Mary não seria nada sem a reluzente atuação de sua atriz (no caso, Rebecca Liddiard).
Utilizando aspectos particulares como fotografia natural e realista, direção de arte caprichosa e montagem com personalidade própria, Alias Grace não demora a construir o universo de seus episódios por meios de flashbacks, em que Grace (enquanto costura) responde às perguntas e conta sobre sua vida para Simon. Presenciamos (senão sentimos) toda conturbação da vida da protagonista. Somos apresentados ao sofrimento de Grace para cuidar de seus irmãos e lidar com os maus tratos do pai (sempre embriagado), ao momento em que Grace conhece Mary, até o período de sua vida em que aceita trabalhar para Thomas Kinnear, onde ocorrem os principais acontecimentos do roteiro.
Como bem diz Simon, Grace descreve tudo com alto nível de detalhes, mas a partir de certo momento simplesmente não consegue se lembrar de algumas passagens, tendo lapsos de memória. As angústias e inseguranças de Grace são tão bem acumuladas pela atriz e pelo roteiro que a todo momento sentimos pena da personagem e de sua condição (só pelo conservadorismo da época já era miserável). Auxiliando nessa “pena” sentida pelo espectador, está a encantadora trilha sonora colaborativa de Jeff Dana e Mychael Dana, que, na hora de ser dramática, não tem medo de seguir as conveniências de melodias melancólicas, e que ao criar um clima de suspense, dá um show de notas assimétricas e repetitivas com o uso de instrumentos de cordas. Na composição do suspense, quem também está sempre “mexendo seus pauzinhos” é a montagem.
Aparentemente, a edição da série sabe exatamente quantos segundos de cada plano o expectador deseja vislumbrar antes de cortar e passar a apreciar outro enquadramento. Não somente por isso, a montagem permite uma assimilação reflexiva entre planos de Grace dentro de sua pequena e apertada cela, sofrendo dentro de um hospício, ou dialogando com Dr. Jordan (Simon). Sempre que um elemento técnico se destaca dentre os demais e permite uma contemplação de sua função exclusivamente da obra em seu total, é algo a se admirar. Além da montagem, quem alcança a mesma proeza é a mais que impecável cenografia dos cenários (internamente e externamente), e a aplicação dos chamativos figurinos, que sem dúvida definem e reafirmam a metade do século XIX.
Sabendo manejar muito bem a iluminação e temperatura de ambientes frios (primeira foto), que manifestam a solidão e o desconsolo da protagonista, a fotografia do qualificado Brendan Steacy também acerta no oposto: transmitir conforto por meio de um cenário com cores quentes (segunda foto). Mas o maior mérito de tudo isso vai para a visão e responsabilidade da experiente diretora Marry Harron, conhecida por dirigir o cult Psicopata Americano (2000). Apesar de suas qualidades já inegáveis, a diretora aqui se coloca em um patamar ainda mais cuidadoso e minucioso da aplicação de aspectos técnicos. Torço para que Alias Grace seja considerada pela crítica e reconhecida pelo público como a obra-prima que de fato é.
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