Crítica: Branagh Theatre Live – Romeo and Juliet
Por Fernando Pivotto
Contando em 2016 quatrocentos anos de sua morte, William Shakespeare consegue manter-se como um dos nomes mais relevantes da cultura ocidental até hoje. O impacto de sua obra ainda é perceptível atualmente, e é quase impossível que você nunca tenha esbarrado em nada influenciado por ele, mesmo que você nunca tenha pisado num teatro, ou lido algo do bardo nas aulas de Literatura do colégio.
Por exemplo, os Underwood de House of Cards têm muito do casal Macbeth, da tragédia homônima. Ela É O Cara (2006), comédia romântica estrelada por Amanda Bynes, é inspirado em Noite de Reis e O Cravo e a Rosa, novela que volta e meia aparece no Vale A Pena Ver De Novo, é baseada em A Megera Domada. E a resolução do arco de Chicó e Rosinha, da versão cinematográfica de O Auto da Compadecida (1999), é a mesma de O Mercador de Veneza.
Se você ainda assim nunca viu nenhum desses, é hora de jogar baixo: O Rei Leão (1994) é uma versão de Hamlet, com menos mortes e mais animais falantes. Pode conferir.
Quando falamos de Romeu e Julieta, seu alcance é ainda mais perceptível. Tendo estreado no final do século XVI – sua primeira montagem ficou, muito provavelmente, a cargo do Lord Chamberlain’s Men, com Richard Burbage, o líder do grupo, como Romeu e Robert Goffe (sim, um homem) como Julieta – a obra é constantemente remontada desde a reabertura dos teatros ingleses, a partir da segunda metade do século XVII, e ganhou ainda mais fôlego após sua estreia nos palcos norte-americanos, em 1730, sendo digna de nota a produção de 1845 das irmãs Susan e Charlotte Cushman, respectivamente como Romeu (sim, uma mulher) e Julieta. Desde que chegou às telonas, no século XX, a obra é constantemente revisitada, com destaque para a versão de Franco Zeffirelli (1968) e para a reimaginação de Baz Luhrmann (1996). É praticamente impossível encontrar uma história de amor proibido que não se relacione com a tragédia shakespeariana, seja em Love Story da Taylor Swift, ou na Saga Crepúsculo, passando por Meu Namorado É Um Zumbi (2013).
Reimaginado pela Kenneth Branagh Theatre Company, o espetáculo cumpriu uma breve temporada este ano no teatro Garrick, na Inglaterra, e o resultado pode ser conferido na sessão especial exibida em parceria com o Cinemark, no dia 05 de dezembro.
Dirigido para os palcos por Kenneth Branagh (da ótima versão de 1996 de Hamlet, com uma excelente Ofélia feita por Kate Winslet; e da versão de 2015 de Cinderela); pelo premiado diretor e coreógrafo Rob Ashford; e por Benjamin Caron (da série de TV The Crown) para o cinema, o projeto atualiza a história, trazendo-a da Verona de 1590 para a de 1950, e é exibido na tela grande num preto e branco de alto contraste, tendo como principal referência visual a obra de Federico Fellini.
Embora atualizações, reimaginações e recontextualizações sejam bem-vindas a cada nova montagem, é importante pontuar que nem todas as escolhas feitas por Branagh, Ashford e Caron contribuem para a narrativa. A tentativa de capturar a efervescência e o charme da Itália dos anos 50 não se sustenta ao longo da projeção, pois não existe nada além de visual que justifique a escolha da equipe criativa. Do jeito que é proposto, o filme/espetáculo falha em relacionar a história dos jovens amantes tanto com o pós-guerra italiano quando com o pré-revolução sexual, de modo que tudo parece um simples exercício de estética. E a estética nem é tão interessante assim, já que as escolhas de enquadramento pouco inspiradas e a correção de cores de Caron miram em Fellini, mas acabam acertando em Nine (2009) – a impressão é que estamos assistindo a uma versão de três horas de Cinema Italiano, número musical de Kate Hudson no filme de Rob Marshall.
As escolhas de elenco também são um pouco incoerentes com o que o filme deseja debater. Antes que a história de fato comece, vemos na tela a entrevista de diversos adolescentes que divagam sobre os benefícios e malefícios da juventude, o que é ser adolescente e o que os adultos podem aprender com eles. Parece ser um norte excelente para uma história que investiga a paixão juvenil, porém Branagh e Ashford negam esta investigação ao escalarem Derek Jacobi (o Rei da versão de 2015 de Cinderela) como Mercúcio. Por mais talentoso e charmoso que o septuagenário ator seja, causa estranheza vê-lo escalado num papel tradicionalmente lido como um homem abaixo dos vinte anos. Num projeto que, teoricamente, é um elogio à beleza da juventude, faz pouco sentido ver alguém de quase oitenta como melhor amigo de Romeu, um rapaz às voltas com o primeiro amor. Nem a justificativa de “juventude da alma” parece sólida o suficiente, já que é justamente a jovialidade, impulsividade e imaturidade de moleque de Mercúcio que são os detonadores da tragédia – é preciso de muita suspensão de descrença para aceitar que este senhor bem vivido tem realmente motivos para puxar a espada contra o primo de Julieta numa briga de rua entre duas gangues.
Por outro lado, a escolha de Lily James (Cinderela e Downtown Abbey) é muito acertada. A atriz consegue dosar inocência e malícia em sua Julieta , e é competente ao mostrar a evolução de sua personagem, da menina ingênua que se apaixona numa festa à mulher que decide se matar a viver sem seu amado. Além disso, é inegável a química entre James e Richard Madden (Game of Thrones), elemento fundamental numa história que trata de paixões irrefreáveis. Madden também está correto como Romeu, saindo-se bem nas cenas de maior carga trágica.
Contudo, fica claro que Branagh Theatre Live – Romeo and Juliet é mais uma proposta visual, perdida na interseção entre o cênico e o cinematográfico. Embora o p&b do filme valorize a estética felliniana apenas evocada no palco, os enquadramentos e a edição são burocráticos, pouco inspirados, e tiram do espectador o privilégio de poder olhar para onde quiser. Claro que é importante prestar atenção em Romeu e Julieta na cena do baile, mas também é importante ver a Mansão Capuleto cheia de convidados, afinal são eles que compõem o clã que impossibilita o amor que surge justamente durante a festa. Ao não me permitir olhar para os parentes/algozes de Julieta, Caron não só não me permite ver quantos e quem eles são, como também não me deixa criar nenhum laço com eles – assim, não consigo sentir a dor que a morte da garota traz para sua família.
Obviamente, há momentos inspirados, como o constante jogo de claro e escuro e a cena em que o dossel de Julieta vira seu véu mortuário. Mas a força da tragédia deve surgir dos seus personagens, não de seu apelo estético.
Embora não resolva muito bem se quer ser teatro ou cinema, Branagh Theatre Live – Romeo and Juliet é, de todo modo, uma experiência interessante. É sempre bom ver uma companhia inglesa montando Shakespeare, e novas aproximações às obras do bardo são melhores do que suas montagens literais, por mais inconsistente que seja o resultado final.
FICHA TÉCNICA
Branagh Theatre Live – Romeo and Juliet
Baseado na obra de William Shakespeare
Direção para os palcos: Kenneth Branagh e Rob Ashford
Direção para o cinema: Benjamin Caron
Elenco: Marisa Berenson, Jack Colgrave Hirst, Freddie Fox, Tom Hanson, Matthew Hawksley, Derek Jacobi, Lily James, Taylor James, Pip Jordan, Ansu Kabia, Richard Madden, Racheal Ofori, Nikki Patel, Chris Porter, Zoë Rainey, Michael Rouse, Meera Syal, Samuel Valentine, Kathryn Wilder
Gênero: Drama, romance
Duração: 180 minutos (com intervalo)
Curiosidade: Richard Madden feriu o pé alguns dias antes da apresentação/gravação de Branagh Theatre Live – Romeo and Juliet. Para que pudesse se apresentar, o ator se submeteu a fisioterapia intensiva, e algumas marcações da peça tiveram de ser alteradas