Crítica: Cara x Cara (1ª Temporada)
Sobre conviver e lidar consigo mesmo
Não é sempre que pensamos o quão ruim, estranho e ao mesmo tempo bom, seria ter que conviver consigo mesmo, literalmente como se existisse outra pessoa idêntica a nós, ainda mais em uma versão a princípio “melhorada”. Como se daria a relação entre dois de nós e nossos conhecidos, familiares, amigos e colegas de trabalho? De forma metafórica e criativa, a série original da Netflix Cara x Cara aborda várias dessas questões de forma leve, obviamente engraçada e além de tudo promete diversos momentos verdadeiramente emocionantes.
Com a expectativa de ter uma vida melhor, o infeliz Miles Elliot (Paul Rudd) resolve aceitar a indicação de um colega de trabalho para ir a um misterioso spa, e após um tratamento para refazer seu DNA, acaba descobrindo que foi clonado e ganhou uma versão melhor de si mesmo, a qual todos a sua volta acham mais interessante, inclusive sua esposa Kate (Aisling Bea). Conforme tenta manter segredo e entender melhor essa situação embaraçosa junto com seu clone, que carrega todas as memórias de sua vida e também está tão confuso sobre tudo quanto Miles, ambos vão perceber o quanto se odeiam e ao mesmo tempo precisam um do outro.
Paul Rudd entrega uma performance convincente que alterna entre personalidades diferentes e ao mesmo tempo iguais, em momentos carregados de humor, e também em cenas mais dramáticas. As situações propostas pelo enredo nos encantam pela capacidade de criar um misto de sensações, que vão da pena pelos personagens, até a raiva que sentimos com algumas das atitudes que tomam. Todos aqui são imperfeitos e movidos pelos sentimentos. Até mesmo o clone de Miles, embora seja uma versão mais disposta e gentil, também tem pensamentos ruins e uma conduta questionável em boa parte do tempo, uma vez que também é egoísta e pretende ter a vida de Miles para si mesmo.
A série demonstra diversos pontos de vista que são usados para recapitular acontecimentos e apresentar a visão do “outro” em determinados momentos, o que afeta um pouco seu dinamismo, mas em contrapartida auxilia no desenvolvimento dos personagens. Ao nos apresentar Miles como um suburbano insatisfeito e acomodado com problemas de autoestima, o roteiro preza pela imediata identificação do espectador, que embora não se encontre ou jamais tenha se encontrado naquela exata situação, consegue facilmente se colocar no lugar do protagonista por ser um momento da vida tão palpável, frequente e que muitos temem. Sentimos empatia pelas condições dos personagens, não só de Miles e seu clone, mas também de Kate, que possui um espaço justo no enredo para expôr seu ponto de vista. Mas essa empatia não garante que concordemos com todas as suas decisões, o que ao contrário do esperado, acaba agregando à narrativa e humanizando os personagens de maneira surpreendente.
Sem apostar em piadas previsíveis ou repetitivas, a comicidade envolve e funciona em praticamente todos os momentos, seja nos mais óbvios ou nos mais implícitos. A soundtrack, composta por faixas que caminham do funk americano ao soul e à disco music dos anos 70 e 80, ajuda a resgatar o romantismo, a ousadia e até a comicidade dos personagens impressionantemente. A qualidade técnica da série também é ótima e cumpre seu objetivo trazendo uma estética naturalista que busca ser um pilar consistente para que a história se desenvolva suavemente, e garanta que todos os espectadores se entreguem completamente.
Apesar de ter como sua proposta principal a comédia e o humor irônico, a série Cara x Cara, esconde, ou melhor, faz questão de deixar evidente camadas profundas de reflexão sobre autoaceitação e autossuficiência, além de promover bons questionamentos sobre fidelidade, poligamia e a capacidade de amar o próximo acima de tudo. Com um pano de fundo tocante e uma dosagem cômica agradável, a Netflix acerta mais uma vez em uma produção original divertida, emocionante e de fácil digestão.