Crítica: Christine – Uma História Verdadeira

Logo na abertura de Christine – Uma História Verdadeira, testemunhamos sua protagonista, Christine Chubbuck (Rebecca Hall), entrevistando o então presidente americano Richard Nixon. Na cena seguinte, em plano aberto, vemos que Christine, na realidade, está conversando com uma poltrona vazia.
Em uma cena, o jovem e ainda desconhecido diretor Antonio Campos nos apresentou o que serão suas duas horas de filme. A história de uma mulher que lida/luta com os vazios de sua vida e rotina. Antonio Campos, nesse processo, entrega possivelmente um dos grandes filmes com este tema, infelizmente tão mais presente na atualidade: depressão.
Baseado em fatos, Christine – Uma História Verdadeira narra com precisão cirúrgica, no ano de 1974, a rotina diária da repórter Christine Chubbuck, uma mulher ambiciosa e inteligente que trabalha para uma emissora local no estado da Flórida, fazendo reportagens de teor positivista com focos para reflexão, ao mesmo tempo em que lida com crises de humor, e frustrações profissionais e no campo pessoal.
Antonio Campos pratica aqui (usando referência bem atual), um cinema ‘anti-Dunkirk’ (último lançamento do diretor Christopher Nolan nos cinemas). Enquanto o colossal filme de Nolan apela à primazia técnica por excelência com fotografia, trilha e edição impecáveis, falta em alma e conceitos questionáveis. O filme de Antonio Campos faz diferente. Obviamente, existem valores técnicos de talento em seu filme, mas estes não são o grande banquete: este é seu enredo e narrativa detalhada de minúcias que são jogadas sobre as costas de uma Rebecca Hall nunca tão magnética como nesse filme.
De trilha delicada e pontual e fotografia (textura) que remete a década de setenta, aliadas a um bom uso de movimentos com a câmera que parece sentir-se atraída a capturar cada micro-movimento da face de Rebecca Hall, o diretor, com esses arranjos debaixo do braço, cuida do resto, que é o essencial: entregar à Rebecca Hall um mundo de situações e acontecimentos que fogem ao controle da personagem-título deste filme. Um tipo inverso de ‘tour de force’, onde a personagem Christine, com o passar do tempo e o repetir de certas frustrações, vai se sentindo mais enclausurada em um mundo onde sua fala e desejos parecem perecer diante de contingências.
O que torna Christine – Uma História Verdadeira morbidamente atraente é a disposição e intento de seu diretor em expor com energia, através de sua atriz, os descensos em espiral de mal a pior da personagem.
Tudo isso vem de profundo estudo e vivência pessoal de Craig Shilowich, que escreveu o roteiro (obs: foi seu primeiro roteiro!). Shilowich também sofreu por anos de depressão e sentiu-se instantaneamente fascinado pela história de Christine Chubbuck.
Neste 2017, muito tem se falado (e, infelizmente, visto) sobre o tema-combo depressão/suicídio. Recentemente, uma revista de medicina chamada JAMA Internal Medicine fez um estudo sobre o aumento de interesse sobre como se suicidar. Usando o Google Trends, constataram um aumento de 26% na área de pesquisas da frase ‘como se suicidar’, contra 23% na busca de ‘prevenção do suicídio’ (link da matéria). De abril para cá, um astro do futebol americano, Aaron Hernandez, e dois rockstars, Chris Cornell e Chester Bennington se suicidaram.
O conceito de que o simples falar/mostrar sobre este tema pode levar a um interesse maior pessoal, já acontecia no século 18 quando o romance Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe, foi publicado. Na época, atribui-se ao romance, um grande número de suicídios, principalmente na Europa.
Estabeleço agora uma comparação entre Christine – Uma História Verdadeira e a série da Netflix de muito sucesso (principalmente entre jovens) 13 Reasons Why, que causou grande furor e dividiu (como quase tudo tem sido neste século) parte da opinião pública e especializada ao contar a história de uma adolescente que se suicida mas deixa fitas cassete com gravações explicando seus motivos para tal extremo ato, e apontando o dedo para os “responsáveis” (notar aspas!) por esta decisão de tirar sua vida.
Neste ponto, o grande diferencial a favor do filme de Antonio Campos é: apesar de a série 13 Reasons Why prestar com competência um serviço público educativo mostrando com pulso firme como são praticados e como funcionam de pequenos a maiores atos de bullying, machismo, e até de direta misoginia; quando centralizamos na personagem principal da série, Hannah Baker, muitos especialistas (psicólogos, psiquiatras, sociólogos) julgam que a série falhou miseravelmente (este redator pensa da mesma maneira) na abordagem da condição principal em Hannah, que é sua depressão.
Esta doença mega complexa e muitas vezes sem explicação lógica de funcionamento (pois vai de individuo para individuo, tanto em suas origens como na diferença dos sintomas) possui mais camadas ou níveis que o inferno de Dante.
A protagonista de 13 Reasons Why não tem nenhuma (!) culpa das atitudes e atrocidades cometidas para com ela, mas ela é ainda a maior responsável por seus atos e estado de espírito. Em seu maniqueísmo narrativo excessivo, a série preferiu focar em outros pontos, e muito pouco na real condição de Hannah (obs.: os episódios 7 e 8 foram os que mais chegaram perto de cobrir melhor a depressão de Hannah).
Já no filme de Antonio Campos, toda a construção, incluindo tratamento de evolução da personagem dentro do enredo, consegue abordar melhor as nuances do estado mental de desequilíbrio de Christine.
Christine é egocêntrica. Isso não é uma crítica a uma pessoa doente. Apenas uma constatação, pois depressivos tendem a olhar quase que exclusivamente para si mesmos, suas dores, seus pesares, suas perdas, e assim em diante.
O sublime em Christine – Uma História Verdadeira é que sua protagonista se mostra redimível.
Christine é perfeccionista, exigente mas se cobra muito, e tem expectativas altas; engraçada mas de maneira mais irônica; é tensa, paranoica, acredita que o mundo está contra ela; apresenta certo grau de infantilização (facilmente perceptível para o espectador nas cenas de diálogo com sua mãe); reprime sua sexualidade e desejos; não aceita com facilidade elogios, se autodeprecia; dramática, ansiosa; geralmente se isola quando tudo a contraria; passional, porém invejosa (cena do casal no bar, e cena dela observando os carros no estacionamento).
Em certo momento no filme, Christine indaga – ‘Como é ser outra pessoa?’ –, algo que ela pratica quando se apresenta para um grupo de crianças doentes, usando de fantoches (obs: outro filme que fala deste tema com cuidado e também humor é Um Novo Despertar, de Jodie Foster).
Também é dilacerante reparar que todos os personagens secundários também possuem seus problemas, medos e agonias. Todavia, enquanto estes encontram e se agarram em escapes, ou procuram apoio, Christine nada quase se afogando sozinha. A empatia, compaixão e solidariedade ao lado passam incógnitas pelos olhos e ouvidos de Christine.
É de alto valor e coragem o trabalho de Rebecca Hall em encapsular tantas características e emoções acumuladas em um só corpo. Dar conta desta montanha russa de sensações é um trabalho de muito esforço, e também de muita paixão. Rebecca Hall hipnotiza com sua Christine, humana e dolorida em seu próprio abandono. É preciso apenas três cenas no filme para entrar na mente de Christine: primeira, o diálogo com a moça na terapia de grupo (melhor cena do filme!) que mostra toda a profundidade de níveis da depressão nela; segunda, diálogo com colega de trabalho no carro, onde vemos/sentimos em seus olhos, a desesperança tomar a frente; e terceira, sua última cena no filme, de agonia e desespero.
Sem ser panfletário, mas atencioso ao mostrar as camadas de uma doença tão devastadora, o diretor Antonio Campos propôs um projeto que nos puxa para uma maior luta por resistência e compaixão diante da grande dor.
Christine Chubbuck sorriu, deu risada, brincou, se esforçou, ficou esperançosa… mas, às vezes, nossas mentes fazem grande sombra.
FICHA TÉCNICA
Título Original: Christine
Direção: Antonio Campos
Produção: Great Point Media; BorderLine Films; Fresh Jade; The Wonder Club; The Orchard; Curzon Artificial Eye
Roteiro: Craig Shilowich
Gênero: Drama biográfico
Duração: 119 minutos
Elenco: Rebecca Hall (Christine Chubbuck); Michael C. Hall (George Peter Ryan); Tracy Letts (Michael Nelson); Maria Dizzia (Jean Reed).