Crítica: Corpo e Alma

Crítica: Corpo e Alma

Retorno da diretora Ildikó Enyedi é marcado por ótimo drama romântico que combina ludismo com naturalidade

Premiado com o Urso de Ouro (prêmio máximo do famoso Festival de Berlim) no ano passado, o filme Corpo e Alma possui com certeza a premissa mais original e provocante entre todos os filmes indicados ao Oscar de 2018. Sua execução não é impecável, mas sem dúvida é uma notável obra que consegue mesclar, de maneira criativa, dois aspectos que a princípio se contrapõem: ludismo e naturalidade.

Numa dualidade entre o dormir e o acordar, um casal que não se conhece tem sonhos exatamente iguais, em que ambos são animais (ele um veado e ela uma cerva) e acabam se encontrando diariamente todas as noites nesse mundo paralelo de fantasia. Quando chega a hora de se encontrarem de verdade, a situação se mostra ainda mais complexa. Ele é Endre (Morcsányi Géza), o diretor financeiro de um matadouro, que com um semblante frio, geralmente tenta esconder seus sentimentos e desejos, possivelmente por consequência de algum amor mal resolvido. Ela é Mária (Alexandra Borbély), a nova inspetora de qualidade do matadouro, cheia de manias curiosas e uma fidelidade impressionante com normas e etiquetas. Ela também pode parecer apática e insensível, mas ao contrário de Endre, provavelmente nunca conheceu o amor e não sabe como se comportar quando tais sentimentos começam a surgir.

Com atuações soberbas dos personagens principais, que se moldam por seus olhares e expressões corporais, o filme tenta se construir com o mínimo de diálogos possível (embora em alguns momentos os diálogos se tornem bem expositivos, porém não cansativos) traduzindo o que pode ser traduzido do amor, em imagem e som ambiente. É um deleite para o espectador poder contemplar a belíssima fusão entre a fotografia naturalista e a direção de arte minuciosa, com cores vivas em objetos pontuais que se banham em torno de muito branco, marrom e tons esverdeados.

Entretanto, o filme não é um complexo de infalibilidade. Sinto que faltam motivações pra algumas ações dos personagens (não apenas os principais), pois seguindo o senso comum,  acabam sendo um tanto quanto improváveis em certas cenas. Outro defeito da obra que está diretamente ligado ao aspecto anterior, é a personalidade complicada dos protagonistas, que dificulta a identificação do espectador com os personagens. A forma como se tratam e se comportam pode afetar a empatia criada pelo público para com intenções e objetivos dos personagens. Pessoalmente, senti um pouco isso. Mas a responsável direção de Enyedi não permite que o espectador se desvie do caminho central de seu roteiro, e passe a torcer para que Endre e Mária se apaixonem e terminem juntos.

Com algumas cenas fortes e sem espaço para brilhos da trilha sonora e da montagem, Corpo e Alma é um filme para ser visto nas entrelinhas. Uma produção encantadoramente simples capaz de te emocionar com detalhes que vivem nos mínimos prazeres da vida. A obra é uma interpretação pessoal da diretora/roteirista sobre como é possível se permitir amar e ser amado, respeitar e se descobrir com os trejeitos de seu parceiro, aceitando que ninguém é igual a ninguém (e nem deve ser). Recomendo aos sonhadores que apreciam a construção lenta e realista de um amor entre duas pessoas peculiares.

FICHA TÉCNICA
Direção e Roteiro: Ildikó Enyedi
Elenco: Géza Morcsányi, Alexandra Borbély, Réka Tenki, Zoltán Schneider, Ervin Nagy, Itala Békés
Produção: Erno Mesterházy, András Muhi, Mónika Mécs
Fotografia: Máté Herbai
Montagem: Károly Szalai
Música: Ádám Balázs
Gênero:
Drama / Romance
Duração: 116 min.

João Pedro Accinelli

Amante do cinema desde a infância, encontrou sua paixão pelo horror durante a adolescência e até hoje se considera um aventureiro dos subgêneros. Formado em Cinema e Audiovisual, é idealizador do CurtaBR e co-fundador da 2Copos Produções. Redator do Cinematecando desde 2016, e do RdM desde 2019.