Crítica: Detroit em Rebelião
Quando um ótimo elenco se junta a um diretor competente e prestigiado, sabemos que a expectativa de que o filme seja bom é grande. E se, por fim, essa expectativa tiver sido em vão, é péssima a sensação para qualquer cinéfilo ter que admitir que o filme não é lá aquelas coisas. Contudo, é com um imenso sorriso no rosto que proclamo Detroit em Rebelião como mais um sucesso da cineasta Kathryn Bigelow, que jamais decepciona seu público e carrega consigo uma das mais sólidas e impecáveis filmografias. Seu timing para a escolha de temas pertinentes mostra-se novamente louvável, filmando este material minuciosamente coletado com uma estilização de dar inveja.
No ano de 1967, Detroit vive cinco dias de intensos protestos e violência. Um ataque policial na cidade resulta em um dos maiores tumultos na história dos Estados Unidos, levando à federalização da Guarda Nacional de Michigan e ao envolvimento de duas divisões aéreas do Exército americano. Dentro deste recorte histórico, nos encontramos com alguns personagens que possuem a tarefa de apresentar uma história baseada em fatos reais, manifestando-se dentro do contexto.
Começamos conhecendo a visão dos negros (que, por sinal, não é unânime) através de personagens como Melvin Desmukes (John Boyega), um inteligente guarda de segurança privada, e Larry Reed (Algee Smith), um simpático homem, vocalista principal de um grupo de R&B (o verdadeiro conjunto The Dramatics). Logo, outros personagens negros como Fred Temple (Jacob Latimore), Carl Cooper (Jason Mitchell) e Greene (Anthony Mackie) vão se apresentando relevantes para o desenvolvimento da trama.
Do outro lado da moeda, vemos os policiais como os brancos antagonistas do filme – e do período em geral. O maior nome entre eles é Philip Krauss (Will Poulter), que representa o que de mais insensível e racista possuía a polícia americana dos anos 60, e que na história é intensificado pela presença dos oficiais Demens (Jack Reynor) e Flynn (Ben O’Toole), que trabalham, na maior parte do filme, em prol dos interesses de Krauss. Devo dizer que as atuações mais chamativas são as de Algee Smith, John Boyega e Will Poulter, que roubam os holofotes de quem for.
Com toda a explosão e revolta dos negros após receberem seus direitos civis (pelo menos em teoria), o roteiro acerta em cheio ao explorar a vasta gama de opiniões à respeito da revolução nas ruas. Desmukes, um próprio negro, traz uma visão mais conservadora e calma da situação, enquanto outros negros mais indignados carregam as angústias e o sofrimento de seu povo em suas vozes. Detroit em Rebelião não procura se apoiar em uma narrativa tão original, mas expõe, com tamanho realismo, as sensações dos negros neste período importante.
Em mais uma parceria com o roteirista Mark Boal e com o montador William Goldenberg, que também trabalharam no aclamado A Hora Mais Escura (2012), Bigelow retorna com o experiente cinematógrafo Barry Ackroyd, responsável pela fotografia do premiadíssimo Guerra ao Terror (2009). A dupla se mostra ainda mais firme e produtiva, criando perfeitamente um ambiente desconfortável e conflituoso com movimentos de câmera soltos, que em momentos podem lembrar o found footage, mas que na verdade estão ali por opção estética, buscando a sensação claustrofóbica do espectador e arrancando-a cabalmente.
A paleta de cores mescla temperaturas agradavelmente em suas cenas, com ambientes pouco iluminados em cenários internos e externos. Impossível negar a latente percepção de uma boa reconstrução dos cenários e figurinos dos negros durante os anos 60. Tudo é pensado para que o roteiro (simples, porém reflexivo) por si só consiga atrair o público, evidenciando a hipocrisia humana, a ineficiência policial e o racismo até então “aceitável” da época.
O que realmente brilha é a montagem de Goldenberg. Cortes necessários e eficientes garantem um dinamismo obrigatório do drama, que, por durar quase duas horas e meia, poderia definitivamente cansar o público. Mas o que também garante os olhos abertos do expectador são as sequências de tensão e ação propostas pelo roteiro, e para quem conhece a diretora, sabe que ela é mestre nisso. A elaboração do suspense, aliada ao medo e submissão dos negros perante os policiais, cria diversas emoções na platéia, que sendo branca ou negra, sente na pele a aflição e o tormento dos negros.
Agora, há uma questão que acho válido ser comentada. Um dos pontos altos do filme é o fato dele ser lançado em uma época conturbada, cheia de polaridades políticas, opiniões fortes e, sem dúvida, muito desrespeito por parte de todos os lados. Isso é bom para o filme, pois sua temática se baseia no sofrimento dos negros enquanto lutavam para ter seus direitos civis assegurados no final da década de 60, algo que pode fazer o sangue do público ferver em algumas cenas e emocionar facilmente. Porém, se isso é ótimo para o filme, é péssimo para a humanidade, pois isso nos mostra o quanto atrasados estamos, uma vez que em muitos lugares ainda presenciamos o racismo (e preconceitos em geral) de policiais e outras autoridades, denegrindo a imagem de seres humanos que apenas buscam viver suas vidas de maneira simples, livre e independente. Seja de forma exposta ou disfarçadamente (muito bem trabalhado em Corra!), vemos que o racismo está longe de chegar ao fim, e por isso encaramos as escolhas do roteiro como algo tão verossímil e ainda possível.
Detroit em Rebelião é um belo reflexo do cenário americano em 1967, além de um show audiovisual de aspectos técnicos.
FICHA TÉCNICA
Direção: Kathryn Bigelow
Roteiro: Mark Boal
Elenco: John Boyega, Will Poulter, Algee Smith, Jacob Latimore, Jason Mitchell, Hannah Murray, Kaitlyn Dever, Jack Reynor, Ben O’Toole, Anthony Mackie, Joseph David-Jones
Produção: Kathryn Bigelow, Mark Boal, Matthew Budman, Megan Ellison, Colin Wilson
Fotografia: Barry Ackroyd
Montagem: William Goldenberg
Gênero: Drama
Duração: 143 min