Crítica: Dor e Glória
Confissões de Almodóvar
As roupas coloridas e o penteado com cabelos em pé logo denunciam. O cineasta Salvador Mallo, protagonista vivido por Antonio Banderas em Dor e Glória, é um alter-ego nada disfarçado de Pedro Almodóvar, o mais celebrado dos diretores espanhóis. Prestes a completar 70 anos, o autor de A Pele Que Habito, Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos e Fale Com Ela faz seu filme mais confessional, mesmo que já tenha usado elementos de sua biografia em obras anteriores.
E pouco importa saber se coisas como uma temporada de vício em heroína ou um romance traumático com alguém que depois foi morar na Argentina, duas das situações presentes no roteiro do filme, de fato aconteceram na vida real. Dor e Glória não pretende ser uma espécie de releitura da página oficial de Almodóvar na Wikipedia, mas sim uma carta de amor à família, às paixões, suas culpas e, principalmente, ao cinema. Em suma, tudo que aquilo que o move e inspira.
No momento em que conhecemos Salvador, o personagem de Banderas, ele passa por uma paralisia criativa, reflexo também de problemas de saúde que drenam sua energia – em Dor e Glória, grande parte da dor tem caráter físico, com direito a uma sequência de gráficos para explicar cada parte do corpo acometida por algum tipo de mal, aliviado apenas com o uso de drogas (lícitas ou não).
Indisposto a escrever um novo longa, Salvador se prepara para receber uma homenagem na Filmoteca de Madrid, onde um de seus primeiros trabalhos será exibido em cópia restaurada. É a senha para revisitar pontas deixadas soltas no passado, como o desentendimento com um de seus atores, Alberto Crespo (Asier Etxeandia).
O reencontro tem efeito bola de neve e, sem querer querendo, acaba gradativamente colocando a rotina do protagonista em marcha novamente. Quando Crespo insiste para transformar um texto íntimo do ex-desafeto num monólogo teatral, por exemplo, acaba abrindo uma porta para a volta de uma figura importante na trajetória de Salvador, Federico Delgado (o argentino Leonardo Sbaraglia), cuja aparição rende um dos momentos mais sensíveis do filme.
Enquanto está neste registro do tempo presente, Dor e Glória prefere um tom naturalista, até pouco convencional quando se pensa em algo feito por Almodóvar. Como Banderas interpreta um sujeito forçado a se movimentar com certa rigidez, por conta de um problema na coluna, e sem grandes rompantes de emoção à flor da pele, tudo é mais contido, ainda que o colorido dos cenários compense essa aparente frieza.
Em paralelo, cenas que remetem à infância de Salvador representam um resgate da veia mais melodramática do diretor, com direito a um belo instante musical, no início, e uma interpretação propositadamente afetada de Penélope Cruz, como a mãe conservadora e cuja relação com o filho se revela nem sempre tão harmoniosa. O desfecho metalinguístico justifica todas essas escolhas.
Para quem segue a filmografia de Almodóvar, é impossível não ver nos diálogos e contextos um pouco de A Má Educação, Volver, A Lei do Desejo e Tudo Sobre Minha Mãe, como se Dor e Glória amarrasse os nós de um universo cinematográfico (expressão da moda) “almodovariano”, mais ou menos como Ultimato fez com a franquia Vingadores. Sem precisar de efeitos especiais ou histórias infantilizadas. É importante saber que no cinema ainda há heróis que não usam capa.