Crítica: Era Uma Vez… Em Hollywood
Memórias afetivas de Tarantino
Quentin Tarantino sempre teve um gosto para resgatar atores do ostracismo. Foi assim com John Travolta em Pulp Fiction, Pam Grier em Jackie Brown, David Carradine e Daryl Hannah em Kill Bill, para ficar nos casos mais famosos. É natural, portanto, que o protagonista de Era Uma Vez… Em Hollywood, ode do diretor à indústria cinematográfica norte-americana, seja um astro que já viveu dias melhores e agora luta para não cair no esquecimento. Trata-se de Rick Dalton (interpretado por Leonardo DiCaprio), um antigo herói das telas que agora vive a insegurança de ser saco de pancadas em produções televisivas.
Os golpes que leva na ficção podem ser cenográficos, mas as escoriações em seu ego são reais – como é exposto pelo encontro com o empresário Marvin Scharwz (Al Pacino). No primeiro de seus hilariantes chiliques durante o filme, fica clara a personalidade de Dalton: meio patético, meio encantador, ele é mais um dos grandes personagens da filmografia de Tarantino. No fundo, é alguém apavorado com a possibilidade de cair na irrelevância, certamente algo bastante comum no meio artístico, ecossistema altamente darwinista, no qual sobrevive apenas quem se adapta – mesmo que isso signifique uma temporada na Itália atuando em spaghetti westerns.
Se Dalton representa uma estrela em decadência, a Sharon Tate (Margot Robbie) que encontramos Era Uma Vez… Em Hollywood é o oposto. Sua carreira está em plena ascensão e ela ainda tem um prazer genuíno ao entrar de forma anônima para acompanhar a reação do público à sua atuação, o que rende uma cena singela e comovente, de uma sutileza poucas vezes vistas num filme de Tarantino.
Vizinhos na fábula escrita pelo cineasta, que passa entre fevereiro e agosto de 1969, Dalton e Sharon tocam suas vidas em paralelo, mas o longa nunca perde de vista que a sorte pode virar a qualquer momento. Seja num potencial encontro fortuito (“Posso estar a apenas uma festa na piscina de estrelar o próximo filme de Roman Polanski”, se anima o personagem de DiCaprio) ou num encontro sombrio com a seita comandada por Charles Manson.
Como já tinha feito em Bastardos Inglórios, Tarantino parte de um evento real para criar uma versão alternativa dos fatos, sem a intenção de reescrever a história, mas para de alguma forma resgatar uma inocência perdida e tentar preencher uma lacuna deixada aberta e oferecer um vislumbre de como as coisas poderiam ter sido, caso o destino tivesse planos diferentes e Deus compartilhasse de seu senso de humor peculiar.
No universo do cineasta tão emblemático que virou adjetivo desde que surgiu no cenário, Bruce Lee (Mike Moh) e um dublê pobretão como Cliff Booth (Brad Pitt) podem medir forças num combate em pé de igualdade. Afinal, Tarantino tem amor tanto pelos mestres quanto por aquelas figuras que apenas orbitam os arredores do holofote e essa é sua forma de prestar homenagem.
Nitidamente mais solto do que em Django Livre e Os Oito Odiados, quando flertou com o cinema da linhagem clássica, o diretor lança mão de recursos narrativos como jump cuts e flashbacks repentinos, o que confere a Era Uma Vez… Em Hollywood um tom menos formal do que seus antecessores. Em uma demonstração de devoção a Rick Dalton, mantém cenas longas do personagem atuando, suspendendo a trama para deixar o protagonista brilhar. A sequência do conflito no saloon é exemplo disso, e desde já mais um ponto alto na trajetória de DiCaprio.
Apesar dos litros de sangue muito menores do que o habitual (pelo menos até o clímax), o filme pode ser considerado o mais “tarantinesco” dentre os nove que lançou até hoje. Um mergulho na memória afetiva de um apaixonado por cinema, que nunca esqueceu de onde veio e, ao valorizar tanto os nomes indiscutíveis quanto o lado mais descartável da cultura pop, conseguiu a proeza de ressignificar as próprias referências.