Crítica: A Forma da Água

Crítica: A Forma da Água

A nova obra de Guillermo del Toro é um espetáculo audiovisual, uma poesia cinematográfica e realmente tudo isso que estão dizendo

O amor é algo inexplicável aos olhos de muitos. Muitos tentam resumir o amor dizendo simplesmente que é algo que não se explica, apenas se sente. É sim uma boa maneira de encarar, mas eu pessoalmente enxergo o amor como algo que vai além do sentimento. É uma abertura para algo novo, espontâneo. É uma energia que queima dentro de todos nós, e que permite que nos entreguemos totalmente a um outro ser. E para qualquer cinéfilo apaixonado como eu, é sempre um gigantesco prazer quando percebemos que filmes românticos ainda são indicados à premiações de todo o mundo, embora não tanto como antigamente. Foi o caso da obra-prima de Chazelle chamada La La Land (2016) com sua história de amor capaz de emocionar a todos os sonhadores, e é o caso de A Forma da Água, com del Toro trazendo o que de mais original suas obras possuem: um deleite visual e sonoro que se incorpora em cima de uma bela história fantasiosa.

A história se passa na década de 60, em meio aos grandes conflitos políticos e transformações sociais dos Estados Unidos da Guerra Fria. Conhecemos de cara nossa protagonista, a muda Elisa (Sally Hawkins, Paddington 2), zeladora em um laboratório experimental secreto do governo, que se afeiçoa a uma criatura fantástica mantida presa e maltratada no local. Para executar um arriscado e apaixonado resgate, ela recorre ao melhor amigo Giles (Richard Jenkins) e à colega de turno Zelda (Octavia Spencer). Porém, o que ela não esperava é a determinação de Richard (Michael Shannon), que procura todas as maneiras de cumprir com o seu trabalho e manter a criatura no laboratório.

Não dá pra não começar a escrever uma crítica deste filme dissertando sobre a tremenda interpretação de Sally Hawkins como Elisa, que justamente está indicada como melhor atriz em todas premiações. É fácil estabelecer uma comparação de oposição entre a atuação de Sally Hawkins e a de Scarlett Johansson em Ela (2013). Enquanto Johansson atua apenas com o poder de sua voz, transmitindo todos os pensamentos e sentimentos de sua personagem, Hawkins faz a mesma coisa, mas com o contrário: a linguagem corporal e suas expressões faciais. Ambas são atuações interessantíssimas, mas a profundidade emocional que Hawkins consegue atingir apenas com olhares e seu jeito de andar é impressionante.

O elenco todo do filme está inteiramente engajado em seus personagens, entregando ótimas interpretações. Octavia Spencer está cativante como Zelda, difundindo carisma e humor por onde passa, ainda que sua personagem não tenha tanto destaque em cena. Richard Jenkins também se sai bem como Giles, um dos personagens mais sentimentais e interessantes do filme. Mas o único que consegue alcançar a presença de Hawkins, é Michael Shannon interpretando um egocêntrico e repugnante coronel que representa o antagonista da história.

Outro personagem um pouco apagado mas bastante sedutor, é o do cientista Robert Hoffstetler (Michael Stuhlbarg), que atua como um aliado da protagonista, com padrões de personalidade bem parecidos com os do Doutor Ferreiro, interpretado por Álex Angulo em O Labirinto do Fauno (2006), clássico do diretor. Mas além de boas atuações, todos os personagens são bem traçados pelo roteiro, com manias próprias ou até mesmo objetos pessoais. Assim como os personagens, toda a história é desenvolvida em uma divisão de atos eficiente, que consegue criar tensão no espectador sem fazê-lo perder a vulnerabilidade sentimental para que possa se emocionar com as cenas entre Elisa e a criatura. As ações dos personagens são verossímeis e os acontecimentos causam preocupação do público, pois sem esforços, este já sente empatia pelos personagens desde o começo.

Que seja dito que a montagem de Sidney Wolinsky é simplesmente um dos maiores alicerces da obra. Já de início, os cortes rápidos salientam o ciclo cotidiano de Elisa, nos ambientando ao ambiente pretendido pelo filme. Posteriormente, a montagem se mantém com comedimento, trazendo cortes suaves que conectam bem planos longos com médios – aliando-se à influência onisciente da trilha musical composta pelo genial Alexandre Desplat, que trabalha em uma das trilhas mais emocionantes e comoventes que já ouvi em anos. Momentos apreensivos são bem conduzidos por músicas sobrecarregadas de harmonias angustiantes, enquanto o romantismo é prezado por melodias agradáveis e amenas.

E não é apenas nas músicas originalmente compostas para o filme que o público se emociona. A soundtrack também conta com combinações de Easy Listening e jazz, com destaque para a maravilhosa e incomparável “You’ll Never Know”, composta por Harry Warren e Mack Gordon, que se repete inúmeras vezes no filme. Os brasileiros também podem se deliciar com a presença de Carmen Miranda cantando “Chica Chica Boom Chick”.

A Forma da Água cria uma mescla de culturas de maneira agradável, acolhedora. Assim como os clássicos do jazz e do Easy Listening, junto à citação e referências de ícones do Cinema Clássico de Hollywood que enfatizam a influência americana no filme, também notamos inspirações europeias como a moda francesa, visivelmente presente no penteado, figurino e construção de cenários, tudo contrastando com o conflituoso período da Guerra Fria. Por falar em design de produção, presenciamos no laboratório cenários e figurinos de tons frios, meio a um verde azulado que reflete o ambiente aquático, e ao mesmo tempo se associando à renovação, ou à plenitude vivida por Elisa após se apaixonar pela criatura. No apartamento de Giles, presenciamos o excessivo marrom e o verde musgo, manifestando conforto e nostalgia.

Saudemos também os efeitos especiais do filme, realistas e nada exagerados, o que ajuda na suspensão de descrença do espectador, que se entrega completamente ao universo mágico oferecido pela obra. A composição da criatura é ao mesmo tempo que assustadora em alguns momentos, singela e inofensiva em outros. Mas a criatura não seria metade do que é se não fosse pela atuação do mestre Doug Jones, parceiro de longa data de del Toro. O ator dá vida à criatura com expressões corporais sofisticadas, fazendo de uma simples postura algo extremamente relevante.

O prazer visual da obra não se limita à direção de arte e aos efeitos especiais, sugerindo uma direção de fotografia muito bem elaborada por Dan Laustsen, que envolve o espectador para dentro da história através de movimentos de aproximação lentos, explorando cômodos com sutileza, controlando perfeitamente a iluminação de cada cena.

Guillermo del Toro garante, disparadamente, a melhor direção do ano de 2017. Há belíssimos enquadramentos e uma preocupação com todos os detalhes de cada aspecto técnico, assegurando que seja de fato uma das melhores transcrições românticas cinematográficas de todos os tempos. A Forma da Água pode não ser tão imprevisível: assim como La La Land, o roteiro substitui a imprevisibilidade, tão cobrada por cinéfilos hoje em dia, pela mais simples e profunda missão de traduzir o amor e o companheirismo em poesia, sensibilidade e delicadeza. E isso o filme faz com maestria. Uma obra-prima para se guardar.

FICHA TÉCNICA
Direção:
Guillermo del Toro
Roteiro:
Guillermo del Toro, Vanessa Taylor
Elenco: Sally Hawkins, Michael Shannon, Doug Jones, Richard Jenkins, Octavia Spencer, Michael Stuhlbarg, Lauren Lee Smith, Nick Searcy, David Hewlett
Produção: J. Miles Dale, Guillermo del Toro
Fotografia: Dan Laustsen
Música: Alexandre Desplat
Montagem: Sidney Wolinsky
Gênero:
Romance/Drama
Duração: 123 min.

João Pedro Accinelli

Amante do cinema desde a infância, encontrou sua paixão pelo horror durante a adolescência e até hoje se considera um aventureiro dos subgêneros. Formado em Cinema e Audiovisual, é idealizador do CurtaBR e co-fundador da 2Copos Produções. Redator do Cinematecando desde 2016, e do RdM desde 2019.