Crítica: O Conto
História biográfica de abuso sexual se transforma em filme pungente sobre acertar as contas com as próprias memórias
Coragem. É esta a palavra que vem à cabeça no final de O Conto, filme distribuído pela HBO que vem ganhando elogios merecidos desde sua estreia em janeiro, no Festival de Sundance. É um dos casos em que a arte serve como forma de seu autor processar sentimentos muito íntimos e lançá-los ao mundo, na tentativa de melhor compreendê-los e até ressignificá-los, agora como obra.
A artista em questão é a diretora e roteirista Jennifer Fox. Aos treze anos, ela foi abusada sexualmente por um casal de adultos, chegou a escrever na época (início dos anos 70) uma relato em forma de ficção sobre isso numa aula do colégio e, como não poderia deixar de ser, convive com as cicatrizes emocionais deste trauma desde então. Essa é sua história e também a do filme.
Em O Conto, Jennifer é interpretada por Laura Dern, em uma das melhores performances da carreira. O passado vem à tona quando, a partir do reencontro do texto que escreveu na pré-adolescência, ela confronta aquelas experiências e pela primeira vez se dá conta de sua gravidade. O que sofreu foi um abuso, e a protagonista se dá conta que não há outra maneira de dizer isso.
Por diversos momentos, o longa joga com a dualidade entre a maneira com que sua personagem lembra daquela situação e aquilo que de fato aconteceu. Quando Jennifer começa a relembrar aqueles eventos, ocorridos enquanto fazia um curso de equitação durante suas férias, o flashback apresenta uma atriz de quase vinte anos no papel. Afinal, era assim que ela se via: praticamente adulta, confiante e capaz de tomar suas próprias decisões.
Porém, quando vê um álbum de fotos da época na casa de sua mãe, é confrontada pelo fato de que, na realidade, era apenas uma criança. A atriz dos flashbacks é então ajustada para isso, sendo substituída por Isabelle Nélisse, uma menina de feição inocente e pueril. Desta forma, o choque de vê-la em cenas de cunho sexual (nas mais pesadas foi utilizada uma dublê de corpo, é bom frisar) causa impacto e, mesmo longe de serem apelativas, um incômodo extremo.
O roteiro aponta de forma clara para os truques que nossa memória pode nos pregar, principalmente para bloquear uma experiência dolorosa. Esta negação também está no discurso da protagonista, que se recusa a chamar de vítima, como se esta condição fosse a enfraquecer perante dela mesma. É um pensamento comum em parte das mulheres que passam por atos de violência, consequência de uma sociedade historicamente condicionada a relativizar estes atos e até mesmo colocar uma pecha negativa em quem foi abusada. Laura Dern transita por toda esta espiral de sensações com classe, fincando os pés numa interpretação sem exageros.
Em tempos de #MeToo e aumento de denúncias de assédio, estupro e outras formas de agressão, a importância de O Conto se potencializa, mas seria injusto julgar o filme apenas por sua sintonia à uma das discussões que domina Hollywood no momento – o que já seria um mérito por si só.
Há muita engenhosidade na maneira com que a cineasta trata este enredo espinhoso. Assim como na vida real, a Jennifer da tela é uma documentarista. A partir disso, o longa se apropria desta linguagem para conduzir uma pesquisa pela consciência da personagem. Em sua imaginação, ela entrevista o homem e a mulher que lhe abusaram, mantendo cristalizada as fisionomias joviais que tinham quando tudo aconteceu.
É notável também como o filme evita o tom de revanchismo contra seu algoz. Da forma como apresenta sua alter-ego, interpretada por Dern, a autora não está em busca de vingança, mas sim de um acerto de contas interno. Assim, o embate mais interessante é da Jennifer adulta com a Jennifer criança, colocado em cenas onde as duas se enfrentam, num diálogo interno que expõe o quão complicado pode ser para alguém lidar com uma situação como aquela, mesmo muitos anos depois dos fatos. Para alguém tão acostumado a ouvir as histórias dos outros, ouvir a si mesma se prova uma missão bem mais complicada.