Crítica: O Irlandês

Crítica: O Irlandês

A máfia no divã

O Irlandês

“Eu soube que você pinta casas”. A frase, que abre o primeiro contato, via telefone, entre Frank Sheeran (Robert De Niro) e Jimmy Hoffa (Al Pacino), é o título do livro escrito por Charles Brandt que inspirou o roteiro de O Irlandês. Como o diretor Martin Scorsese demonstra habilmente logo nas primeiras cenas de seu filme, “pintar casas” é um eufemismo para matar pessoas: o sangue jorrado na parede é a tinta, o revólver serve como pincel. É este o universo em que se desenrola a trama, que acompanha cinco décadas na vida de seus protagonistas em cerca de três horas e meia.

Scorsese volta a falar de violência, assim como fez em seus trabalhos mais famosos (Taxi Driver, Os Bons Companheiros, Os Infiltrados, só para citar alguns). Como de praxe em sua carreira, a brutalidade está longe de ser gratuita. O Irlandês é uma análise sobre o peso das escolhas, os dilemas da lealdade e as consequências de vidas cheias de segredos à margem da lei – simbolizadas não apenas pelos letreiros que ilustram o destino trágico de diversos personagens em suas primeiras aparições, mas pela renúncia à harmonia familiar.

O personagem de De Niro, encostado numa casa de repouso e já em idade avançada, é o narrador. As lembranças de uma viagem dele na companhia de Russell Bufalino (Joe Pesci, saindo da aposentadoria direto para uma atuação marcante) e suas respectivas esposas são o fio condutor da história, embora o peso daquela jornada só seja conhecido mais adiante. Frank Sheeran conta como passou de veterano da 2ª Guerra Mundial a motorista de caminhão a braço direito de um dos chefões da máfia a homem de confiança de Hoffa, líder sindical mais conhecido e polêmico dos EUA, cujo desaparecimento rende teorias até hoje, quase 45 anos depois.

Sheeran é o sujeito que qualquer manda-chuva mafioso quer contar: acostumado a seguir ordens sem questionar, sereno, competente, fiel e pouco ambicioso. “Pinta casas” como se estivesse apenas pintando casas, uma forma de sustento como qualquer outra. É um exímio cumpridor de tarefas, ponto. Por isso mesmo, é um protagonista extremamente atípico para este tipo de filme: não são suas as decisões que movem o roteiro, pouco sabemos sobre seus interesses. Ao mesmo tempo, ele é peça-chave numa disputa de poder que cada vez mais testa os acordos tácitos assumidos com as figuras mais poderosas com as quais convive.

Muito de O Irlandês tem a ver com a passagem do tempo, e por isso faz sentido a decisão de rejuvenescer seus atores/personagens com computação gráfica. É um efeito que causa alguma estranheza à primeira vista, mas acaba se tornando mais natural. O risco assumido pelo cineasta ao investir parte do orçamento num artifício que atrasou o lançamento do longa e, se não funcionasse, poderia comprometer o tom geral mostra que Scorsese é um entusiasta das novas ferramentas para se contar uma história e sua rejeição aos filmes da Marvel tem a ver mais com as estruturas formulaicas e repetitivas da franquia do que com a pirotecnia.

Longe de ser ranzinza, o cineasta tem um senso de humor apurado, captado em muitos dos diálogos do filme, cujo script é assinado por Steven Zaillian (vencedor do Oscar por A Lista de Schindler). Ver mafiosos discutindo sobre o tempo de tolerância adequado para atrasos em reuniões ou o transporte adequado de peixes em carros não apenas humanizam aquelas figuras, mas, principalmente, desarmam o espectador para a porrada que vem na cena seguinte. 

Por fim, além das piadas, tiros, gritos e discussões, o silêncio também tem seu destaque. Seja num telefonema balbuciante que tenta disfarçar uma verdade inconfessável ou nos olhares fuzilantes de uma filha decepcionada com o pai, O Irlandês sabe que, quando as vozes e barulhos ao redor cessarem, cada um que se vire com sua própria consciência.

Diego Olivares

Crítico de cinema, roteirista e diretor. Pós-graduado em Jornalismo Cultural. Além do Cinematecando, é colunista do Yahoo! Brasil