Crítica: Paris is Burning
Por Fernando Pivotto
Às vésperas da estreia de sua nona temporada, RuPaul’s Drag Race se estabelece como um dos maiores fenômenos LGBTs da cultura pop contemporânea. Se por um lado é surpreendente que um programa de nicho tão específico tenha sido tão bem aceito pela indústria do entretenimento (dadas as devidas proporções, naturalmente), por outro o sucesso da corrida de drags é um reflexo do tempo em que vivemos: desde a virada do milênio, tornou-se um pouco mais comum ver personagens ou programas sobre LGBTs por aí.
Diversidade, afinal, tornou-se um conceito em alta, e a indústria fez a sua parte para potenciar este valor – e lucrar com ele.
Contudo, se de alguns (pouquíssimos) anos pra cá os holofotes se viraram para (pouquíssimas) drags e trans, não sem certa exotificação, a situação ainda é precária: por mais aparentemente aberta que é a indústria do entretenimento, ela não dá conta de acolher a todos os que tentam a sorte nela – das cem competidoras de Drag Race, quantas conseguiram firmar carreira? E para cada uma (competidora ou não) que conseguiu lucrar com o vácuo aberto pelo programa, quantas ainda continuam desempregadas? E quando passar o hype de RuPaul, que já começa a dar sinais de perda de fôlego, e quando a nova moda chegar e reorganizar o tabuleiro, para onde serão realocadas estas peças?
A situação fica ainda pior se pensarmos fora do showbiz. Com quantas drag queens você falou esta semana? Quantas drag queens estudaram com você na sua universidade? Quantas trans trabalham na sua empresa?
É. Pois é.
Se mesmo agora, onde LGBTs, identidade sexual, identidade de gênero e diversidade são tópicos tão quentes, drag queens e pessoas trans ainda são marginalizadas, tente imaginar como tudo se dava nas últimas décadas do século XX. É exatamente disso que fala Paris Is Burning, documentário clássico sobre a cultura drag queen que fervilhava nos clubs underground norte-americanos a partir dos anos 1950.
Acompanhando, ao longo de alguns anos, as competições e as competidoras da famosa casa noturna que dá nome ao documentário, a diretora Jennie Livingston mostra um mosaico de histórias que refletem de que modo a sociedade conservadora americana olhava para os marginalizados e como era encarada de volta. Aqui e ali é possível perceber como a homofobia e a transfobia, a incapacidade de aceitar as diferenças, a repressão sexual, a imobilidade financeira e social e a dificuldade de acesso a recursos básico (saúde, educação, segurança), levavam homens homossexuais e mulheres trans a estabelecer na vida noturna uma contracultura onde pudessem se expressar e aspirar por uma vida melhor.
As pistas de dança eram o local onde a catarse era possível, e os desfiles eram o momento onde podia-se transcender a vida cotidiana. Ferreira Goulart disse que “a arte existe porque a vida não basta”, e é possível perceber esta lógica nos concursos documentados aqui. Nas casas noturnas, é possível ser tão feminina, tão afrontosa, tão glamourosa ou tão qualquer coisa que se possa querer ser: com a roupa certa, a atitude certa e a categoria certa, a competidora poderia passar de oprimida a lendária em um desfile.
Se a ostentação na pista era uma resposta à falta de perspectiva financeira (afinal, grande parte das competidoras, além de gays/trans era latina e/ou negra, o que tornava ainda mais escassas as oportunidades de trabalho), a violência das ruas traduzia-se no vogue, estilo de dança tradicional do período onde a tensão e agressividade era tão importante quanto a graça e delicadeza são para o ballet clássico.
A alienação familiar contribuía para o estabelecimento das Houses, vínculo afetivo formado entre as drags mais velhas e as iniciantes, que se juntavam por proteção, orientação e sociabilidade. A dinâmica permanece até hoje, como pode ser visto na corrida de RuPaul: Sahara, da segunda temporada, era uma Davenport assim como Kennedy, da sétima. E Alyssa, queridinha dos fãs e participante da quinta temporada e da segunda edição do All-Stars, é mãe da House of Edwards, misto de núcleo familiar, grupo de dança e marca que inclui Shangela (temporada 2 e 3), Vivienne Pinay (5ª temporada), Gia Gunn (6ª) e Laganja Estranja (6ª).
Ao mostrar seus objetos de estudo montados e desmontados, pensando na noite na balada ou no futuro a longo prazo e, principalmente, chorando pelas irmãs que morreram, Paris Is Burnung é, ao mesmo tempo, um elogio à cultura LGBT e uma contundente crítica à exclusão social que vigorava na segunda metade do século passado.
Exibido pela primeira vez em 1990, o documentário foi um dos primeiros grandes sucessos da Miramax, sendo premiado em Sundance e eleito um dos melhores filmes do ano pelo The Los Angeles Times, Times Magazine e The Washington Post, além de definido pela edição comemorativa de 40 anos da New York Magazine, de 2008, como uma das obras nova-iorquinas mais influentes surgidas nas quatro décadas da revista. A obra ainda ganhou uma legião de fãs, seja pelo valor narrativo, seja pelo valor histórico.
Às vésperas de estrear a nona temporada de seu reality show, RuPaul tem o privilégio de ocupar um lugar de destaque num movimento que transforma a contracultura drag em mainstream – ou, pelo menos, que aumenta a visibilidade de um nicho tão marginalizado.
Da mesma forma que Paris Is Burning jogou luz sobre os bailes, conferindo um verniz intelectual à temática, RuPaul consegue projetar a arte drag via streaming, tornando-a mais popular do que nunca.
Agora é esperar para ver aonde isso vai dar, daqui a 26 anos.