Crítica: Rocketman
Legado na tela
Rocketman começa em tom de confissão. Vestido como uma espécie de diabo extravagante, Elton John (Taron Egerton) adentra a reunião de um grupo de apoio e vai listando seus vícios: drogas, sexo e por aí vai. O filme dirigido por Dexter Fletcher assume logo de cara ser um acerto de contas com o passado, mas com o cuidado de nunca expor por demais seu biografado a ponto dele se tornar alguém que possa causar incômodo ao espectador médio – em dois momentos, por exemplo, o protagonista se excede com alguém e logo em seguida diz “sentir muito”. Em ambos os casos a resposta é “eu sei”, como se a pessoa ofendida atestasse que, no fundo, Elton é um ser humano desprovido de más intenções.
Se o filme não consegue escapar completamente de ser, acima de tudo, uma ode produzida pelo músico sobre si próprio e com uma mensagem que ressalta seu talento e capacidade de superação, em alguns momentos consegue ser também cinema de primeira grandeza. O histórico recente de produções sobre astros do rock atesta que tal equilíbrio é algo não tão simples de ser atingido.
A estrutura do roteiro segue o formato tradicional de uma cinebiografia: a infância numa casa de relações familiares complicadas, buscando em vão uma aprovação paterna; os primeiros contatos com a música; o ponto de virada para o sucesso e a espiral da fama que traz dinheiro e excessos. Há também a relação com a homossexualidade, que o longa trata de maneira pontual, de forma a não ser o principal enfoque, mas sem esconder as cenas de sexo ou a dificuldade da mãe em lidar com o fato.
Rocketman encontra maneiras de contar essa história utilizando o repertório de Elton John sem se prender à cronologia das composições, mas da forma que mais se adequa à narrativa proposta. Assim, a sequência ao som de ‘Saturday Night’s Alright for Fighting’ aparece antes do encontro com o autor da letra da música, Bernie Taupin (interpretado por Jamie Bell), enquanto ‘Goodbye Yellow Brick Road’ só é entoada perto do final, mesmo as duas fazendo parte do mesmo álbum, lançado em 1973.
É esse mesmo senso de liberdade poética que cria brechas para sequências delirantes, os pontos altos do filme. A cena no primeiro show no Troubadour em que Elton levita e faz o mesmo com o público já nasce clássica. O mergulho no fundo do poço ao som de ‘Rocketman’ é outro achado, contrapondo a letra sobre um astronauta com saudade de casa ao mergulho quase suicida do protagonista.
Para além da trilha sonora e dos figurinos que reconstituem com a exatidão o espírito do pop nos anos 70 e 80, o longa ganha sua alma pela interpretação de Egerton. No papel mais desafiador de sua carreira até aqui, o ator não apenas canta maravilhosamente como encontra a melancolia necessária para dar conta das passagens introspectivas, nas quais seu personagem precisa vencer a solidão profunda que o dilacera para mascarar um sorriso e subir ao palco. Há uma cena de frente para o espelho que, apesar de ser uma situação clichê, tem força semelhante à que Margot Robbie estrelou em Eu, Tonya.
No mesmo nível de Egerton está Jamie Bell. Assim como a parceria entre Elton e Taupin foi a espinha dorsal da carreira do cantor e pianista, é a amizade com toque de amor platônico entre os dois que mantém o filme de pé. Por outro lado, os personagens de Richard Madden (que aparece como o empresário e vilanesco amante) e Bryce Dallas Howard (a mãe) não vão além do caricato, e a atriz ainda é prejudicada na parte final por uma maquiagem que a envelhece de forma pouco convincente.
Sem abrir mão da sua vontade de falar ao grande público – mesmo que para isso tenha que dar espaço para soluções convencionais – e encontrando instantes de brilho que o tornam singular, Rocketman acaba sendo uma síntese da persona pública que Elton John construiu ao longo do tempo. Hoje aposentado dos palcos para se dedicar aos filhos, ele deixa seu testamento eternizado também na tela.