Crítica: Você Nunca Esteve Realmente Aqui

Crítica: Você Nunca Esteve Realmente Aqui

Lynne Ramsay, de novo, removendo manchas de sangue

Imagem do filme 'Você Nunca Esteve Realmente Aqui'

Desde o ótimo Precisamos Falar Sobre o Kevin (2011) não saía um novo filme da diretora Lynne Ramsay. A espera acabou, e não poderia ter sido de melhor maneira. Você Nunca Esteve Realmente Aqui continua – como seu antecessor – a retratar personagens manchados pelo sangue, sejam estes inocentes ou causadores destas feridas.

O excepcional novo filme da cineasta narra a vida de Joe (Joaquin Phoenix), um veterano da guerra, que ganha a vida fazendo serviços de resgate. Estes geralmente terminam em mortes e muito sangue. Após um trabalho para resgatar Nina (Ekaterina Samsonov) de um bordel dar errado, Joe é apanhado em uma rede de intrigas, e corre atrás das respostas.

Você Nunca Esteve Realmente Aqui faz parte da mesma subcategoria que O Sacrifício do Cervo Sagrado: a dos filmes falsamente pessimistas. Enquanto o mais recente e excelente longa de Yorgos Lanthimos vai por um viés mais arrojado, pois verte para um tipo de humor invertebrado, peculiar; o de Ramsay tem maior foco sedimentado, além de uma atmosfera incomensuravelmente hostil.

Esse foco converge quase que integralmente em Joaquin Phoenix – em mais uma performance superlativa.

No começo deste ano, alguns lamentaram a precoce aposentadoria de Daniel Day-Lewis, talvez o ator mais tecnicamente imersivo de Hollywood. Se Day-Lewis é o mais técnico, Phoenix é o mais instintivo. Existe um grau de magnetismo que vem deste sujeito que é inegável. Phoenix consegue fazer o trajeto de um pólo a outro como que na velocidade do som. Da inocência dócil à bestialidade, em milésimos (à propósito, um inspirador exercício é imaginar o retrato que o ator fará do icônico vilão Coringa).

Ao entrar nos méritos de Lynne Ramsay – sendo um deles saber o tipo de ator que têm em mãos – , vale uma lembrança. Neste ano comemorou-se o quinquagésimo aniversário de 2001: Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, e, em tantas análises elogiosas a esse clássico do cinema, talvez a que mais se sobressaia é o tipo de tratamento da história, um enredo de narrativa especulativa mais do que explicativa. Ramsay aplica o mesmo conceito sobre o personagem de Joaquin Phoenix com primazia.

Nos aspectos técnicos, destaques para a fotografia de Thomas Townend, de teor intimista, rústico, mais urbano – como as vestimentas de Joe – e à montagem de cortes súbitos que são similares aos surtos psicóticos do protagonista, exemplificada na cena de Joe invadindo o bordel para resgatar Nina, apresentada pelas câmeras de segurança. A cineasta equilibra estes elementos enquanto compõe tudo de maneira orgânica e harmônica.

Ainda sobra o responsável pela cereja do bolo, que é Jonny Greenwood e sua trilha composta artesanalmente. Greenwood – famoso guitarrista e tecladista da banda de rock alternativo Radiohead – repete o ótimo trabalho que já havia apresentado em Trama Fantasma. No filme de Ramsay se destacam as dinâmicas: dos momentos dolorosamente íntimos aos impulsos de violência desenfreada. Aí entra o compositor com seus silêncios, e a música-tema de baixo distorcido capaz de revirar órgãos e paralisar membros.

Interessante que a diretora em filmes sobre a brutalidade humana apresente em seus dois últimos trabalhos algo de redimível em suas personagens. Foi assim em Precisamos Falar Sobre o Kevin, com mãe e filho, e também em Você Nunca Esteve Realmente Aqui, entre Joe e Nina.

Entre tantas outras coisas, esta é também uma história sobre a aleatoriedade dos encontros que a vida traz. David Fincher passou suavemente nesse tema – por meio do romance – em O Curioso Caso de Benjamin Button, ao passo que Lynne Ramsay o faz pelo espectro da redenção. Lembrando que, quando um está numa contagem progressiva, e outro numa contagem regressiva, em determinado momento ambos chegam no mesmo número.

Alexis Thunderduck