Entrevista com Affonso Uchôa e João Dumans, diretores de “Arábia”
Com estreia marcada para 05 de abril, Arábia narra a vida comum de um trabalhador
O Cinematecando conversou com Affonso Uchôa e João Dumans, diretores de Arábia. Ganhador de cinco prêmios na última edição do Festival de Brasília (entre eles Melhor Filme e Melhor Ator), o longa circulou por mais de 50 festivais no mundo, entre eles o de Roterdã, New Films/New Directors (Nova York), BFI London Film Festival e o Viennale. Ao todo, foram mais de dez prêmios conquistados lá fora.
Arábia narra de forma sensível a vida de Cristiano (Aristides de Sousa), operário de uma velha fábrica de metal. Seu dia a dia é contado ao espectador através de seu diário, que é encontrado pelo jovem André (Murilo Caliari).
Confira a entrevista completa:
1) Este é o primeiro filme que vocês dirigem juntos. De onde nasceu Arábia?
Affonso Uchôa: Este filme nasce da nossa amizade, da nossa parceria criativa. A primeira experiência que trabalhamos juntos foi em A Vizinhança do Tigre, em que eu fui diretor e o Affonso fez a montagem e o roteiro. Durante o processo do filme, que durou 5 anos, ficamos mais amigos e nosso diálogo criativo se intensificou. Com isso, tivemos vontade de dirigir algo juntos. Então, no meio do processo de A Vizinhança, enviamos um edital. A ideia inicial era unir essas duas cidades em nosso filme: Contagem e Ouro Preto. Queríamos criar uma história contemporânea e periférica. Fizemos o roteiro e ele foi aprovado, o que foi uma surpresa enorme, só que nós ainda estávamos mergulhados em A Vizinhança. Não quisemos misturar os dois filmes, mas mal sabíamos que A Vizinhança demoraria mais 3 anos para ser finalizado e, só então em 2014, voltamos ao nosso roteiro de Arábia.
Quando voltamos, mudamos nossa ideia de longa metragem para curta metragem. Resolvemos sediar a história na Vila Operária de Ouro Preto. Ao nos aproximarmos do local, vimos que aquela era a Ouro Preto mais interessante, que não é nada turística ou bela, nada que a UNESCO mapeou – e que na verdade tem tudo a ver com Contagem e o mundo em que vivemos. Tudo a ver com o mundo que a gente vive, cujas vidas são totalmente expostas e devotadas ao trabalho. Arábia nasceu daí. Criamos o personagem do operário e resolvemos atar um pouco as pontas com a vizinhança. Chamamos o Aristides para ser nosso operário e começamos a escrever o personagem todo para ele. Por volta dessa época, voltamos atrás e pensamos na história como um longa metragem novamente!
2) Como foi voltar a trabalhar com o Aristides? Ele deu sugestões para o personagem dele? Como ele lidou?
João Dumans: Pra gente foi incrível. Ele é um amigo e uma pessoa muito talentosa e inspiradora. Quando escrevemos o filme, tínhamos muita segurança de que ele não só era capaz de atuar, como também de colocar o filme em outro patamar. Então isso dava muita confiança pra gente. Na cena em que eles estão tocando violão, aqueles trabalhadores são trabalhadores reais, que estavam construindo a rodovia mesmo, e colocamos o Juninho (Aristides) no meio deles. Após 10 minutos, a conexão já era total. Eu acho que talvez essa seja a maior contribuição dele: tanto como amigo, como alguém que nos inspirou e nos motivou a fazer (o filme), e também como alguém capaz de alçar aquele personagem a uma outra dimensão através do engajamento emocional que ele tem com as situações. O fato é que eu e o Affonso escrevemos uma história que nós mesmos inventamos, porém fomos inspirados por ele e pensamos este personagem como não possuindo a vida do Juninho, mas uma vida que ele poderia ter levado.
3) Existem muitos “Cristianos” por aí, não só no Brasil. Como vocês encaram a importância de trabalhar de forma tão sensível este personagem “anônimo”, que não vemos muito no cinema?
Affonso Uchôa: O principal fator de importância disso é fazer com que o trabalho de arte, do próprio cinema, torça um pouco a chave da realidade. Fazer a engrenagem do mundo virar um pouco para o lado contrário e que, ao invés da gente reforçar o status quo e demarcar a lembrança e notoriedade dos grandes feitos, dos grandes poderosos, a gente deixe a marca do protagonista que sempre perde. Então, para mim a importância disso é “per si” (isolada). Porque fazer o mundo operar, ou pelo menos pensar que as coisas podem ser diferentes do que elas de fato são, pra mim já é importante socialmente. Para nós, como diretores, tinha outra importância, porque a história era muito boa de ser contada, era fascinante. O perigo de nos deixarmos levar pelo mundo como ele é, é começar a achar que quem não está de fato ocupando o lugar do protagonista é porque não mereceu chegar até lá; sendo que, na verdade, isso é uma balela. O poder não dá notoriedade a quem merece. A notoriedade é surrupiada, negociada. O problema é que tem gente que não tem nada no bolso para fazer negócio.
O cinema entra nesta parte, em negociar com outras bases. Não há demérito aqui. Não é porque esses “Cristianos” não mereceram deixar marcas. Não, eles foram impedidos, até porque a história e trajetórias deles são incríveis. O que eles têm a dizer e a mostrar pode ser muito interessante – tão interessante quanto qualquer outra história. No fim, tem também algo político para mim. É como se com isso a gente conseguisse resgatar, promover uma certa democracia de algo essencialmente humano. Não há nada mais humano do que desejar vencer a morte, ter a certeza de que a gente morre e o que fazemos para evitar isso a partir de então. É muito sacana do mundo preservar os instrumentos de drible da morte só para quem tem dinheiro. A partir do momento em que a gente faz um filme que dá protagonismo, tenta trazer um olhar e dá a dimensão da força daqueles que perdem, dos “Cristianos”, é como se a gente dissesse: “Vem cá, a gente pode tentar driblar a morte juntos”.
4) Como que vocês chegaram ao estilo naturalista do filme, além da narração em off? Foi no decorrer do projeto que vocês foram pensando nestes elementos para compor Arábia?
João Dumans: Acho que todo processo de construção possui uma parte pensada e outra não pensada. Tudo vai do que nos motiva. O interesse pela literatura sempre foi mútuo para nós e sempre foi motivador. De alguma maneira, essa motivação vai se convertendo e ajuda a dar a forma do filme. De início, o que a gente não queria era oferecer a realidade de forma muito crua, muito documental. A gente queria trabalhar uma estética que pudesse dar um peso teatral e literário para os diálogos. Optamos por um lado naturalista do cinema brasileiro – este que se internacionalizou e segue um padrão que foi imposto por um outro tipo de cinema, como Tropa de Elite, Cidade de Deus e etc, que para nós era nosso anti-modelo. Não queremos nos render a este retrato que, supostamente, é fiel do universo da pobreza, mas na verdade é uma coisa ilusória, que mantém distância e que tenta trabalhar com uma espécie de chantagem emocional. Você vê um ator global fazendo um traficante – eu não engulo, e o Affonso também não. Pra gente é outra coisa. Quem faz, beleza, mas não é isso o que vamos fazer. O tipo de vibração que queremos dos atores que trabalhamos é outra. A atuação pode não ser tão boa, mas a presença será muito mais real, muito menos simulada. E isso, para nós, faz a diferença.
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