42ª Mostra – Crítica: Roma

42ª Mostra – Crítica: Roma

“Fale de sua aldeia e falará do mundo”

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Depois da consagração ao explorar o espaço sideral em Gravidade, Alfonso Cuáron decidiu ir em direção oposta no projeto seguinte. Em Roma, ele volta para suas memórias de infância no México e monta um álbum de recordações cinematográfico com tamanha riqueza de detalhes que é um pecado ele ser disponibilizado direto na Netflix, exceto por algumas exibições especiais. Assim, a maior parte do público fica privada da experiência em tela grande, fundamental para a imersão naquele ambiente.

Para a plataforma o negócio valeu a pena: esta foi a primeira obra da empresa a ganhar o Leão de Ouro no Festival de Veneza, um dos troféus mais cobiçados do cinema de arte. A chancela coloca a gigante do streaming de vez na conversa deste circuito, apesar das desavenças com os responsáveis por Cannes.

O cenário de Roma é uma casa de família rica, na qual Cleo (Yalitza Aparicio) trabalha como uma das empregadas domésticas. Sua rotina é cuidar dos quatro filhos de um médico e sua esposa, limpar o chão constantemente carimbado pelas fezes do cachorro de estimação da residência e, basicamente, passar despercebida. O contexto é similar ao de Que Horas Ela Volta?, mas se no longa brasileiro o conflito entre classes é predominante, aqui o comentário social é mais amplo.

Cuáron não resume a vida de Cleo àquele contexto das relações de trabalho. Ele simultaneamente investiga os anseios mais profundos da personagem, principalmente a partir do turbulento relacionamento dela com Fermín (Jorge Antonio Guerrero), cuja paixão por artes marciais rende alguns dos momentos mais inusitados do filme. Roma também fala sobre a condição muitas vezes solitária da mulher, independentemente de sua posição econômica.

Além da preocupação em tratar das questões humanistas, o filme dedica bastante espaço às forças da natureza, que num país como o México podem ser assoladoras. Há o terremoto num hospital, tempestade de granizo, queimadas na floresta e a potência do mar, revelados em momentos diferentes. São fatores que demonstram haver algo além do humano naquelas terras, marcando presença e se fazendo notar.

Apesar de demonstrar fúria, o ímpeto violento do ecossistema (retratado num plano-sequência angustiante em pleno alto mar) não se resulta tão cruel como o dos homens. Um protesto político, por exemplo, se transforma em praça de guerra, para desespero dos cidadãos comuns.

Tudo isso reverbera ainda mais pelas escolhas de linguagem do longa. A fotografia em preto e branco remete diretamente ao neorrealismo, quando o cotidiano “banal” das cidades contemporâneas invadiu o cinema. Os planos longos e de tempos esgarçados entre cortes buscam uma aproximação com o ritmo da existência. A profundidade do campo em cada quadro é utilizada de forma exemplar, abrindo o olhar do espectador para prestar atenção em detalhes que normalmente passariam batidos.

Como se nota, a quantidade de assuntos para os quais Roma abre portas é gigantesca. Mas Cuáron nunca perde o foco, o que é ainda mais admirável ao saber da quantidade de funções que ele acumula: diretor, roteirista, produtor, editor e diretor de fotografia. Dizer que este é um projeto extremamente pessoal soa como redundância, mas o filme nunca parece um olhar para o próprio umbigo.

Pelo contrário. O mexicano levou ao pé da letra o antigo provérbio de Tolstói, que aconselha a “falar de sua aldeia para falar do mundo”. Depois de ter levado o público para Hogwarts, para um futuro sem crianças e até para a Lua, o cineasta aproveita a chance de se comunicar com os 190 países onde a Netflix chega para jogar luz sobre o lugar onde nasceu. E o faz de forma poética, sublime. Como quem conquista o mundo e volta ao lar para contar a história.

Diego Olivares

Crítico de cinema, roteirista e diretor. Pós-graduado em Jornalismo Cultural. Além do Cinematecando, é colunista do Yahoo! Brasil

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