43ª Mostra – Crítica: Cicatrizes
Veias abertas nos Bálcãs
A cena se repete em Cicatrizes, filme de estreia do cineasta sérvio Miroslav Terzic: Ana (Snezana Bogdanovic) percorre órgãos oficiais, de corredores frios e impessoais, em busca de respostas. Ela quer saber o que aconteceu com seu filho, dado como natimorto no parto de 18 anos atrás, mas que nunca chegou a enterrar, ou sequer ver. O Estado tem pouco a lhe oferecer, já que quase sempre é tratada com indiferença.
O subtexto do longa de Terzic tem uma mensagem que fica ainda mais clara nos letreiros finais, quando a mensagem típica das obras audiovisuais inspiradas em eventos reais anuncia que desde a Guerra do Kosovo, entre 1998 e 1999, cerca de 500 bebês desapareceram e nunca tiveram seus paradeiros devidamente esclarecidos pelas autoridades locais.
Cicatrizes é o retrato dos efeitos devastadores dessa negligência, acompanhando a jornada de Ana, uma empreitada por vezes demasiadamente solitária. Seu marido (Marko Bakovic) já está cansado de pensar no assunto e a filha Ivana (Jovana Stojiljkovic) acredita que a mãe se preocupa mais com o filho morto do que com ela, que está às voltas com as crises da adolescência.
Quando o apurado roteiro, escrito por Elma Tataragic, muda essa perspectiva temos a dimensão como o Estado sérvio privou aquela mulher não apenas de seu rebento, mas fez com o que mais próximos duvidassem de sua própria sanidade. Uma vertente ainda mais extrema de gaslighting.
Apesar do tema espinhoso, que renderia o mais rasgado dos melodramas, o filme não é de todo melancólico. A fotografia quente não deixa o clima ficar pesado demais e o final é bonito e esperançoso, dando um vislumbre do que poderia ter acontecido caso a relação entre mãe e filho pudesse existir. Sem ser panfletário, Cicatrizes não está interessado em justiçamento. Sua busca, muito mais profunda, é pela verdade.