43ª Mostra – Crítica: História de Um Casamento

43ª Mostra – Crítica: História de Um Casamento

Amor em transformação

“É sempre amor, mesmo que mude”. Se conhecesse o hit da banda gaúcha Bidê ou Balde, que fez relativo sucesso no começo dos anos 2000, o diretor Noah Baumbach poderia ter usado-o como trilha de História de Um Casamento, seu segundo longa feito para a Netflix, após a comédia dramática Os Meyerowitz: Família Não Se Escolhe.

Acostumado a assumir uma postura quase blasé em seus filmes, no qual os personagens são sempre de uma suposta elite intelectual nova-iorquina, desta vez o cineasta não tem medo de encarar o melodrama para contar a história de um casal em processo de separação. A aposta resulta numa mudança de ares narrativos sem que Baumbach perca sua assinatura, e num novo ponto alto de sua carreira.

Logo nos primeiros minutos do filme, Charlie (Adam Driver) e Nicole (Scarlett Johansson) enumeram tudo aquilo que gostam um no outro. Trata-se, na verdade, de um exercício sugerido pelo terapeuta que media a relação, para que ambos se lembrem de seus pontos positivos antes do iminente divórcio provocar uma série de discussões, levantar mágoas e cutucar seus egos com quase nenhuma delicadeza.

História de Um Casamento sabe muito bem como equilibrar as colunas de defeitos e virtudes de seus dois protagonistas. Charlie é um diretor de teatro tão brilhante quanto arrogante, teimoso e cheio de prenconceitos, além de adúltero, mas ao mesmo tempo capaz de transformar cada grupo de pessoas que encontra numa grande família. Já Nicole é uma atriz que teve coragem de abdicar de uma carreira promissora em Hollywood para se dedicar aos palcos, mãe dedicada, mas de temperamento volúvel, com pouca segurança para tomar decisões difíceis. São personagens de muitas camadas, o que enriquece a obra como um todo, e as atuações dos dois atores, em particular.

O turbilhão de sentimentos enfrentado pelo casal serve de pretexto para diálogos que vão do emocionalmente carregado (a discussão aos berros que tem até soco na parede é um exemplo) ao sarcasmo puro (as referências aos contrastes entre Nova York e a Los Angeles, por exemplo). A expressão “roteiro afiado” já virou lugar comum, mas esse é daqueles casos que justificam a definição, tamanha a precisão de cada palavra que sai da boca do elenco.

E, por falar em elenco, Driver e Johansson são acompanhados por aparições marcantes de Laura Dern, Ray Liotta e Alan Alda. Todos interpretam advogados de estilos diferentes, mas que muitas vezes acabam amplificando as diferenças entre ex-marido e ex-mulher. E há também a presença do filho pequeno do casal, Henry (Azhy Robertson), cujo papel na trama tem rendido comparações do filme ao drama Kramer vs Kramer, vencedor do Oscar em 1980, estrelado por Dustin Hoffman e Meryl Streep.

No filme de Baumbach, porém, o processo litigioso está em segundo plano, assim como as discussões sobre onde e com quem a criança deve ficar. O que está em jogo é a observação de como, em determinados casos, um amor precisa ser torcido e arrebentado até se transformar em outra coisa. E continuar sendo amor, mesmo que mude.

Diego Olivares

Crítico de cinema, roteirista e diretor. Pós-graduado em Jornalismo Cultural. Além do Cinematecando, é colunista do Yahoo! Brasil