Coluna do Matheus: ‘O Mau Exemplo de Cameron Post’ é irritantemente atual
No livro O Mal-Estar na Civilização, Freud escreve que uma das exigências ideais da sociedade civilizada é a que determina amar ao próximo como a ti mesmo – uma ordem, segundo ele, mais antiga do que o cristianismo.
De lá para cá, muitas das perturbações psíquicas dos indivíduos ao longo da história resultam do descumprimento certo de uma norma inalcançável. “Como levar isso ao cabo?”, questiona o autor.
Em O Mau Exemplo de Cameron Post, filme vencedor do Grande Prêmio do Júri no Festival de Sundance 2018 e que agora chega ao Brasil, essa relação entre amor e culpa, descrita por Freud em 1930, é a chave para entender uma série de conflitos que produz estragos ainda nos dias atuais.
De maneira resumida, podemos definir a produção de Desiree Akhavan como um filme sobre a “cura gay”, o que já coloca a sua própria distribuição no centro de uma peleja contemporânea – sim, estamos em 2019, mas os ministérios da Mulher e da Família estão aí para nos lembrar dos delírios de lógica binária entre o rosa e o azul.
O clima anda tão estranho que, no início do ano, a Universal Pictures do Brasil anunciou que havia desistido de lançar nos cinemas daqui o filme Boy Erased – Uma Verdade Anulada, que trata de tema semelhante.
É certo que o Brasil de 2019 é um terreno fértil para patrulhas quando o tema é sexualidade, e isso não é só pano de fundo, mas parte da engrenagem de qualquer pretensão estética de quem almeja entrar neste vespeiro.
No caso de Cameron Post, a Pandora Filmes comprou a briga. E temos, enfim, um filme sobre “cura gay” em cartaz.
Mas seria injusto resumir o filme a esse ponto da disputa narrativa. Primeiro porque a “cura”, aqui, é um delírio. E também, e principalmente, porque se trata, mais que tudo, de um filme sobre a culpa – e sobre este mandamento ancestral que é amar ao próximo como a ti mesmo. Duas impossibilidades, portanto, que só os delírios mais autoritários poderiam tentar manejar sem se explodir.
O filme, sem querer vender spoiler, é, como não poderia deixar de ser, a história de uma grande desgraça. Uma das cenas não precisou sequer ser filmada, mas apenas reconstituída em um diálogo, para provocar arrepio na plateia.
Voltemos a Freud.
Para o pai da psicanálise, o sentimento de culpa é resultado de um medo duplo: o medo da autoridade e o medo do Super-eu, figura da psicanálise onde reside a consciência moral.
“O primeiro nos obriga a renunciar a satisfações instintuais, o segundo nos leva ao castigo, dado que não se pode ocultar ao Super-eu a continuação dos desejos proibidos”, afirma.
Segundo Freud, a renúncia ao instinto é resultado do medo à autoridade externa; renuncia-se a satisfações para não perder o seu amor.
Pois é pelo amor de uma tia conservadora e tapada que a protagonista da história, Cameron Post (Chloë Grace Moretz), é levada a um internato de orientação cristã para supostamente compreender e desativar a sua ambiguidade de gênero, exposta ao mundo após a revelação de um caso com uma amiga.
Para isso, ouve da diretora/proprietária da escola que é necessário evitar o uso de seu apelido, Cam.
O que ela aprende ali é apenas cultivar o nojo de si e dos próprios desejos. Amar ao próximo como a ela mesma passa a ser uma impossibilidade dupla quando a orientação é odiar a si mesma, ao seu corpo e sua orientação.
Nos olhos vidrados dos parceiros de internato e também dos donos da escola, que parecem o tempo todo sob efeito de calmantes, a culpa pelo medo da autoridade e da própria consciência moral parece brotar por todos os poros. O amor cristão que se quer germinar é regado, assim, com desconfianças, repressão, paranoia, disciplina, estímulo à delação – tudo abafado mal e porcamente por um violão e um hino de louvor. Não tem como dar certo.
No livro de Emily M. Danforth que inspirou o filme, o retrato é um pouco menos insalubre. Isso porque a tensão dramática não se concentra entre a revelação da homossexualidade da protagonista e sua prisão. Antes, é um retrato bem feito de uma época, contada no fim dos anos 1980, e tomada por referências a aparelhos eletrônicos e do mundo pop.
Cameron, antes de ser mau exemplo, era uma garota normal que cresce entre VHSs, clássicos da época, refrigerantes, sorvetes, piscina e competições de natação no lago. O retrato de sua pequena cidade em Montana, nos EUA, não é muito diferente do retrato de qualquer cidade do interior brasileiro ainda nos dias atuais, com suas festas de cowboy, feiras agro, suas princesas da primavera e suas patrulhas quase caninas a tudo o que se afaste da chamada normopatia, aquela obsessão doentia por ser e parecer normal.
No filme, Cameron é suspeita, acusada, julgada e condenada em razão de um único “deslize”; no livro, ela cresce e descobre seus desejos entre vários relacionamentos, inclusive com a melhor amiga, de quem se afasta ao associar o acidente que matou seus pais a alguma punição divina por um beijo quase infantil trocado naquele dia.
O livro, porém, não é só dores; é também sobre as delícias de ser o que é, algo que o filme praticamente optou por suprimir.
Tanto em um, como em outro, a culpa é uma espécie de linguagem universal que organiza os afetos de quem é controlado e de quem quer controlar o que é certo e o que é errado, o que é legítimo e o que é ilegítimo, o que é permitido e o que é passível de punição.
Seria um belo retrato de uma época se não dissesse TANTO sobre os dias atuais.