Análise: Em ‘Nós’, Jordan Peele segue tradição do ‘cinema traficante’

Análise: Em ‘Nós’, Jordan Peele segue tradição do ‘cinema traficante’
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O conceito de cinema traficante, muito bem explicado por Martin Scorsese em seu documentário Uma Viagem Pessoal Pelo Cinema Americano, é um tema essencial para entender a questão da autoria no cinema dos Estados Unidos.

Scorsese explicita ali como, trabalhando num rígido sistema de estúdios onde os produtores e mandatários de companhias cinematográficas eram os grandes donos dos filmes na antiga Hollywood, alguns diretores conseguiam seguir e atender as necessidades deste esquema de cinema industrial, mas através de procedimentos estéticos colocavam suas visões de mundo nessas obras, traficando ideias no subtexto em seus longas.

Eram cineastas que mantinham um projeto de autoria pessoal em filmes encomendados e desenvolvidos por uma rigorosa vigilância da indústria. É assim que nomes como Nicholas Ray, John Ford, Jacques Tourner, Howard Hawks e tantos outros se mantiveram na história do cinema. Muitas vezes numa lógica de “um para eles outro para mim”, esses autores seguiam à risca todas as predefinições do sistema em uma produção, para numa próxima injetar todo seu estilo próprio e assim colocar sua verdade de mundo através desses filmes com forte apelo popular.

Esse foi um conceito muito importante para a geração de Scorsese, que gozou de uma liberdade durante todos os anos 1970. Mas, com uma reorganização comercial de Hollywood na década seguinte, os autores americanos tiveram que buscar naqueles cineastas traficantes, que tanto os influenciaram, um modelo para continuar expressando sua visão de mundo num ambiente extremamente preocupado com as cifras lucrativas de seus
filmes.

Mais uma vez, o cinema de gênero, assim como na Hollywood clássica, torna-se o espaço para a experimentação e, sobretudo para o tráfico. Embora existam os filmes traficantes de Coppola, Scorsese e outros nos anos 1980, os melhores exemplos para esses casos de fato são os filmes de ação de John Milius (Conan, o Bárbaro, Amanhecer Violento), os filmes de comédia de John Landis (Trocando as Bolas) e o misto de ficção científica e terror de John Carpenter (O Enigma de Outro Mundo, Eles Vivem). Cineastas extremamente conectados com os anseios do público, mas com profundos e mordazes comentários sobre o mundo.

É bem verdade que os tempos mudaram bastante. É difícil falar em um cinema traficante quando o sucesso de filmes gira na casa dos bilhões e o controle autoral parte da inserção desses títulos em grandes franquias e reboots. Por outro lado, há um curioso culto à personificação de alguns cineastas, nomes que conseguem grandes orçamentos de gigantescos estúdios com praticamente total liberdade criativa. Sem a necessidade de uma resposta nas bilheterias, mas com um grande desempenho nas premiações cinematográficas, esse tipo de filme se passa por bom cinema.

Alejandro G. Iñárritu, Alfonso Cuarón, Christopher Nolan e Dennis Villeneuve são alguns exemplos disso, e esse cinema é marcado, sobretudo, por um apreço pela técnica acima de qualquer outra coisa. Algo que muitas vezes gera crítica por uma expressão mais egocêntrica e autocentrada do que de fato a definição da expressão de um autor.

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O diretor e roteirista Jordan Peele, no set de ‘Nós’

Talvez o caminho para chegar até Jordan Peele tenha sido longo. No entanto é necessário para entender o quanto Nós é significativo, e como aponta para um projeto de cinema do diretor.

Peele não escolhe o terror apenas por gosto para realizar seus filmes, mas pela consciência do que significa este gênero, que permite uma inventividade estética, que realmente conversa com um grande público (principalmente uma audiência mais jovem) e que dá liberdade para construir, através dos códigos do gênero, uma gama de significados entre as camadas fílmicas. Jordan Peele conecta-se de imediato a uma geração de traficantes. Chega a ser espantoso como há na figura do cineasta um profundo conhecedor do meio cinematográfico e de onde seus filmes podem se inserir.

Corra! é muito significativo nesse sentido, um filme em que Peele entendeu a necessidade de criar um nome forte em torno de sua pessoa, uma forma de se equiparar com esses grandes autores do cinema comercial contemporâneo. Seu primeiro longa é de fato um cartão de visitas, talvez em forma de pedrada, colocando-o com força num sistema onde esse personalismo também é importante. Peele garantiu que, a partir de então, seu nome viesse com aquela famigerada marca: “do mesmo criador de”. Marketing pessoal necessário para facilitar seu acesso ao público.

Corra! e Nós são filmes bem diferentes, apenas compartilham seu gênero. Corra! é um filme direto, um longa que faz do racismo seu filme de terror, transforma a sua temática em pesadelo e se diverte subvertendo códigos do terror para fazer alusão ao que é o racismo na América.

Dotado de coesão e um roteiro extremamente preocupado em soar amarrado, o cineasta transformou o debate sobre o racismo institucional em algo acessível e profundamente discutível, praticamente uma operação inversa aos que faziam os traficantes de outro tempo. Peele evidenciava a questão temática para construí-la através dos códigos de filme de terror, e dessa forma potencializava sua fonte de discussão real através da ficção.

Por outro lado, Nós é um filme exemplar do cinema de tráfico, cumprindo pontos necessários para essa assimilação popular, assim como a construção de camadas e a subversão das temáticas colocadas na narrativa. O primeiro ponto é a construção do terror, do suspense e da tensão. É muito interessante como a primeira sequência se passa em um parque de diversão e numa espécie de casa dos espelhos, porque o cinema de terror é justamente isso: uma série artimanhas ficcionais realizadas para surpreender o espectador, para mantê-lo amedrontado durante aquele passeio que dura um determinado tempo.

Cada cena de Nós coloca mais um elemento daqueles seres que surgiram do submundo para infernizar os humanos. A cada sequência essa ameaça fica maior, maior, até chegar à escala global. Peele constrói um terror que foge dos espaços privados, para chegar aos espaços públicos e constatar um horror total.

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O outro ponto é a compreensão do trabalho de um ator. Talvez, nessa estrutura do filme traficado, o porta-voz de um discurso velado é o elenco. É a crença nessas personas que faz o espectador ser carregado através dos vários subtextos do longa. As presenças de Lupita Nyong’o, Winston Duke e Elisabeth Moss são fundamentais para esse envolvimento público/filme. Lupita tem o desenvolvimento dramático suficiente para gerar a empatia. É justamente dela que os sentimentos de paranoia surgem, e a expressividade da atriz é algo que surge com muita naturalidade. Peele concentra justamente no corpo de sua atriz as emoções principais a serem sentidas pelo público. Imprimir o rosto de Lupita tantas vezes na tela é quase algemar o espectador e a atriz.

eensão do trabalho de um ator. Talvez, nessa estrutura do filme traficado, o porta-voz de um discurso velado é o elenco. É a crença nessas personas que faz o espectador ser carregado através dos vários subtextos do longa. As presenças de Lupita Nyong’o, Winston Duke e Elisabeth Moss são fundamentais para esse envolvimento público/filme. Lupita tem o desenvolvimento dramático suficiente para gerar a empatia. É justamente dela que os sentimentos de paranoia surgem, e a expressividade da atriz é algo que surge com muita naturalidade. Peele concentra justamente no corpo de sua atriz as emoções principais a serem sentidas pelo público. Imprimir o rosto de Lupita tantas vezes na tela é quase algemar o espectador e a atriz.

Winston Duke merece um outro enfoque, pois é um ator que se apoia numa persona cômica. É o famoso alívio do filme, mas é muito mais significativo do que isso. É o terceiro pilar do filme na busca pela sua conexão com a audiência. Nós tem provavelmente as melhores piadas em um longa americano desse ano e do anterior. A comédia aqui é muito mais do que um simples alívio, ela é em primeiro lugar um catalisador do terror. A forma como as piadas quebram a expectativas no longa, faz com que haja um maior controle emocional sob o espectador. O cômico aqui fortalece um pacto sentimental entre o filme e a audiência, como se o diretor forçasse sutilmente seu público baixar a guarda para golpeá-la ainda mais forte.

As escolhas de Peele funcionam mais do que meras concessões. Aqui há mais uma noção de opção pelo cinema popular. Talvez a diferença entre Peele e toda uma tradição de cineastas traficantes é que ele faz isso como se fosse de fato uma escolha autoral. Algo que reflete até mesmo como isso saiu de linha num cinema mais comercial de agora. O fato é que a posição do autor é muito forte aqui. Pensar o que Nós já conquistou com apenas uma semana – a maior abertura de um filme de terror com roteiro original, a discussão sobre a escolha de protagonistas negros -, isso tudo só existe por uma escolha que faz com que o longa situe-se num diálogo constante com o público. A adesão popular faz com que Peele possa colocar muita coisa em jogo no seu filme.

Gabe, o personagem interpretado por Duke, é bastante significativo. Por trás de todas as sacadas irônicas existem comentários sobre uma eterna busca por um estilo de vida consumista, como se o filme ironizasse com uma questão “jura que vocês ainda acreditam no american way of life?”.

Nesse sentido o papel da família de Elisabeth Moss é interessante, pois é muito mais do que apenas um exercício maniqueísta. É como se o objetivo de Gabe fosse justamente aquele. O topo de uma cadeia consumista é aquela outra família, ridicularizada pelo filme até certo ponto. Nessa perspectiva é interessante como a briga entre a família protagonista e os duplos do casal branco se dá. Eles utilizam todos os bens de consumo da família rica para fugir e matar aquela ameaça. Peele jorra sangue nas límpidas paredes da classe alta americana. Todo um capital comercial, cultural e social vai sendo ruído, vai sendo deslocado, vai esvaziando justamente esse conceito de american way.

O final dessa sequência é marcado justamente por Gabe tentando convencer sua família a ficar ali mesmo com todo pânico ao redor. O protagonista estava habitando aquele espaço almejado dentro de uma escala capitalista. Não importa como, apenas concluindo seu desejo. E tudo isso dentro do caldeirão da ironia, surgindo muito mais como um comentário vindo do autor do que algo funcional para narrativa. Isso é o máximo de um cinema traficado: a narrativa sendo levada adiante e um parêntese que insere uma camada opinativa muito forte.

nós filme

O jogo de subtexto espalhado por Nós é extremamente perspicaz. Peele chama bastante atenção por uma narrativa desenvolvida por simbolismos e afins. Muitas vezes isso é colocado ao espectador nessa vontade do filme ficar rodando a cabeça de quem o assistiu. Uma forma de persistir a experiência fílmica por mais de suas horas de projeção. Talvez isso até seja usado demasiadamente no filme, um leve roubo no jogo. Mas pensando nessa estrutura do cinema traficado, fazer com que o espectador mantenha-se pensando naquela obra específica, e não em alguma franquia de universo compartilhado, é bastante interessante e louvável.

Nós baseia seu horror nessa figura arquetípica do terror, a ameaça externa que perturba o ambiente íntimo e chega a instalar o caos num aspecto global. A subversão da premissa clássica do terror é colocada desde o início, quando esses invasores são clones dos protagonistas. O interessante é que aquelas figuras são tão ameaçadoras que no decorrer da narrativa o público, assim como a família protagonista, vai se esquecendo dessa semelhança.

A forma como Peele reestabelece a conexão entre os duplos e os protagonistas é extremamente forte. Cinema que foca em ações específicas, pequenas, que às vezes passam despercebidas numa leitura generalista, mas que são justamente a síntese de um cinema traficado.

Trata-se do instante em que Jason, filho mais novo da família, percebe que seu duplo ainda conecta-se com suas próprias ações, que há uma conexão de gestos. Jason consegue então jogar seu outro nas chamas. O momento é
filmado de maneira quase apoteótica, em câmera lenta, com a presença do sol e do fogo, do plongé e do contra plongé, trabalhando numa clara relação entre os opostos simétricos. Tudo isso reforçando a tensão da cena. Mas concluindo que ali ainda há uma partilha de sensações entre o jovem e o monstro. Ainda há um pouco de um no outro.

Peele chama atenção para o quanto dos protagonistas há naqueles duplos ameaçadores. Num ápice dramático, onde as sensações do público estão no ponto alto, Peele vai tecendo uma construção de que aqueles inimigos têm na verdade uma grande parte humana. É colocada uma questão empática na figura de quem o espectador foi levado a odiar, processo comum na estrutura de um filme de terror.

Isso chega ao plot twist do longa, aquilo que foi colocado como furo de roteiro por alguns, como se as narrativas não tivessem a permissão de se manterem soltas visando alguns outros objetivos do que uma mera conclusão.

O fato é que, na explicação de que na verdade o duplo é quem acompanhamos desde o início, há uma transferência de culpa. Há um primeiro momento de questionar o espectador sobre para quem torcemos. Ali há um comentário muito forte sobre a guerra de todos contra todos, fazendo com que o público seja colocado no lugar do vilão e seja convidado a sofrer o que aqueles monstros uma vez sofreram. É como se Peele oferecesse um pensamento complexo sobre as figuras do ameaçador e do ameaçado, do opressor e do oprimido. Ele relativiza questões que em muitos outros filmes seriam engesssadas.

Dessa forma, há um comentário muito forte sobre a tentativa de compreensão das reivindicações de um grupo determinado – o ato final onde todos os duplos estão de mãos dadas é bem forte nesse sentido, de fato eles conseguiram o que almejavam. Mas também é ponderado, justamente porque a violência causada por todo esse movimento não pode ser esquecida. Ou seja, questiona-se um sentimento de vingança cega que pode ser colocado nesse jogo de polarizações modernas. O filme então ganha contornos de um alerta, até por isso é uma obra bastante aberta. É como se Peele clamasse para que o espectador comece a entender o outro como parte dele, antes que essa cisão seja tão forte que restará apenas o banho de sangue.

Olhando por esse lado, a visão de Peele é pacifista sobretudo, porém realizada num momento onde se enxerga muito mais sangue do que flores. O cineasta faz um filme sobre o oprimido, num mundo onde quase todos estão nessa condição. Tudo isso num blockbuster de terror. Pensar naquele plot twist não necessariamente faz com que todos cheguem a uma conclusão como esta, mas força que exista algo além do filme.

Peele faz com que o espectador pense quem são aqueles, quem são os duplos em épocas que outro não é reconhecido. Peele se afirma como traficante de ideias num momento em que o cinema precisa se reconectar com o público para conversar sobre temas profundos. É um traficante de ideias mais que necessário.

Giovanni Rizzo

Formado em cinema pela FAAP, é diretor e roterista. Escreveu para o site Observatório do Cinema.