Coluna do Matheus: ‘Olhos que Condenam’ faz autópsia de julgamento sem provas, mas com muita convicção
Quem procura uma distração na Netflix para o fim de semana, é bom passar longe de Olhos que Condenam.
A minissérie é fortemente não recomendada para quem busca o sono dos justos, também conhecido como autoengano.
A minissérie de Ana DuVernay é uma mola propulsora das revoltas mais agudas para quem vive em 2019 – e olha que a história, baseada em fatos reais, é de 1989, e a concorrência 30 anos depois é considerável.
O que irrita nos quatro capítulos da série é que, se você tem qualquer referência sobre o caso dos “Cinco do Central Park”, você sabe exatamente o que vai acontecer, e ainda assim torce para que alguém dê algum refresco ou respiro em algum momento, como pede um dos personagens condenado injustamente por estupro quando, num dia quente, se ergue em direção ao único espaço de ventilação da solitária, do tamanho mais ou menos de uma mão aberta. O exercício de empatia construído pela diretora é um exercício de asfixia.
Irrita saber que tudo ali é inverossímil, e ainda assim aconteceu. Naquela solitária cabemos todos nós. A produção é pouco recomendada também a claustrofóbicos.
A minissérie conta a história de cinco jovens negros de Nova York que estavam no lugar errado na hora errada (da História e das posições sociais) e são selecionados, entre tantos outros jovens negros reunidos em uma certa algazarra no parque, para responder a um processo relacionado a um estupro ocorrido no local naquele dia.
Não há qualquer evidência de participação deles no crime – mas eles passam a cumprir pena, diante da Justiça e da opinião pública, no instante em que a promotora coloca os olhos sobre eles e determina aos subordinados que provem a culpa, custe o que custar (no caso, com tortura física e psicológica, a ponto de os acusados confessarem qualquer coisa sob a promessa de voltarem logo para casa).
A atualidade da produção é gritante, a começar pelo papel de Donald Trump, então um excêntrico bilionário de Nova York, em usar o caso para criar uma plataforma política em torno da pena de morte. Em uma das cenas, a mãe de um dos acusados ouve, sem exibir reação, ao futuro presidente dos EUA dizer na TV como os negros são privilegiados naquele país.
Para ela, os 15 minutos de fama do bilionário tinha hora para acabar. Não tinha.
A atualidade passa também por movimentos contemporâneos como Black Lives Matter, e pela corrosão de um sistema prisional e judiciário que não só não estão imunes a erros, como são incapazes de frear o estrago na vida de quem julga com poucas provas e muitas convicções.
Vale destacar ainda o papel das mães para provar a inocência dos filhos do lado de fora da prisão e dos reformatórios.
A minissérie é um retrato de uma época em que fatos não importam – e quando fatos pouco importam, não é só a opinião que é facilmente triturada. São os corpos dos grupos sociais mais frágeis.
No Brasil de 2019, a minissérie ganha um sentido peculiar – principalmente quando as autoridades reunidas para fazer um julgamento limpo se reúnem, em uma das cenas, para combinar a melhor narrativa, e não a mais justa. Alguém já viu essa novela antes?
“Justa?”, pergunta uma das acusadoras, debaixo das barbas do juiz, ao advogado de defesa, em meio ao julgamento.
“Não se trata de justiça. Trata-se de política. Política tem a ver com sobrevivência. Não há nada justo sobre sobrevivência”.
Para bom entendedor, meia conversa vazada basta.
A produção da Netlix mostra como, com tantas instâncias envolvias, não há erro se não acertos naquela cuidadosa e elaborada política de encarceramento em massa dos inimigos nomeados antes de nascer – pela ficção, o espectador percebe que inimigo é alguém de quem não se sabe a história, e por isso não apenas as vidas, mas as histórias daquelas pessoas, e das famílias destroçadas por uma acusação frágil, povoada de convicções e carente de provas, importam.
Pouco antes de ser preso, um dos jovens sonhava em tocar sax; outro só queria jantar com a namorada; um falava sobre esportes com o pai que está à beira da morte quando deixa o reformatório.
Falar sobre o racismo enraizado na instituição que mais deveria jogar limpo é um grande clichê, mas inevitável quando se descobre que a principal responsável pelo caso passou a vida escrevendo best-sellers policiais enquanto um dos acusados injustamente por ela tinha o corpo destroçado na prisão entre adultos aos 16 anos.
E que, o ver a carreira declinar após o sucesso da minissérie, admite ser possível isentar os jovens pelo crime de estupro, mas não por supostos distúrbios causados aos frequentadores bem nascidos do parque – como se fosse possível comparar a gravidade de uma acusação com outra.
Olhos que Condenam chega à plataforma de streaming com outra bomba atômica: o documentário Relatos do Front, atualmenteem cartaz nos cinemas, que mostra um estágio ainda pré-judicial da tragédia brasileira, onde apenas uma cidade, o Rio de Janeiro, recebeu quase o mesmo número de escravos que os EUA, e onde a sentença de morte é aplicada sem direito de defesa.
O documentário vai à raiz da carnificina brasileira, que vitima também os agentes do Estado enviados como soldados de uma guerra que não inventaram.
Para isso, conta com depoimentos valiosos de especialistas que demonstram, por A mais B, como a política de enfrentamento resulta em poucas soluções e muitos votos, e gira como uma engrenagem viciada em um país onde as forças de segurança são cobradas para dar “resultado”, agem sem coordenação entre outras forças, civis e militares, com muita ação e pouco planejamento (inteligência e investigação) e, claro, muita bala – perdida?
Como a minissérie, o documentário acerta em dar às vítimas dessa carnificina o que é retirado delas ainda em vida: um rosto, entre estatísticas, um nome e uma história. São essas histórias, de quem morreu em serviço, com a farda atravessada, ou no pátio da escola, enquanto brincava, que permitem ao espectador questionar quem são seus inimigos – e quem é ele diante do tiroteio.
Visto em sequência, o filme torna Olhos que Condenam uma minissérie ainda mais revoltante. Lá, ao menos, o julgamento viciado gera revolta e é lembrado como deve ser: uma aberração, que não pode se repetir.
Aqui, a aberração não só é minimizada, como justificada. Em nome do “mal maior”, aceita-se a tortura da lei e cria-se o terreno perfeito para a barbárie, esta que produz e difama inimigos mesmo quando estão mortos, como a vereadora Marielle Franco.
Vale, para cá, a aula de cinismo da promotora nova-iorquina. Não se trata de justiça. Trata-se de política. Lembra?