Crítica: Feito na América
Assistindo aos primeiros trailers de Feito na América, com estreia nacional marcada para 14 de Setembro, fiquei com uma impressão estranha de que havia algo de errado. Já tendo testemunhado a história de Barry Seal no ano de estreia de Narcos, vê-lo interpretado por Tom Cruise em um filme hollywoodiano gerou sentimentos conflitantes.
Transformar um traficante que se alimentou da violenta guerra às drogas na Colômbia em um anti-herói engraçadinho, encarnado ainda pela maior estrela do cinema, certamente parecia questionável, no mínimo. Assistindo ao produto final, no entanto, posso assegurar que, se ainda há um leve embelezamento do crime no longa de Doug Liman, sua sarcástica crítica do oportunismo político norte-americano garante uma experiência cinematográfica cativante.
Inspirado de maneira bastante livre na história de Seal, Feito na América retrata a jornada fora e dentro da lei do aviador interpretado por Cruise. Começando como piloto de reconhecimento para a CIA em meio à ascensão dos Sandinistas, Seal acaba cruzando caminhos com ninguém menos que um iniciante Pablo Escobar, junto de seus parceiros no crime. Tão oportunista quanto seu governo, Seal decide ganhar seu tutu trabalhando para os dois lados dessa crescente guerra, enquanto em casa sua esposa Lucy (Sarah Wright) lida com os dilemas de criar uma família em meio a uma situação possivelmente explosiva. O resto é história ou cinema (ou os dois?) no roteiro de Gary Spinelli.
Com uma direção alucinada de Liman, que colaborou com Cruise anteriormente no divertido No Limite do Amanhã, Feito na América pode não ganhar Oscars, mas é o tipo de filme que traz espectadores ao cinema sem sacrificar seu potencial informativo. Evitando a abordagem excessivamente didática das primeiras temporadas da mencionada Narcos, Liman constrói seu estudo de personagem de maneira equilibrada, inserindo-o em ambientes palpáveis populados por figuras igualmente interessantes.
Cruise é obviamente o destaque do filme (e desta vez com um sotaque!). Depois do breve limbo que veio com Jack Reacher: Sem Retorno e o ruim mas tolerável A Múmia, é ótimo ver o ator, agora em seus 55 anos, ressurgir com um papel que reforce seu (infinito?) carisma e ainda o permita a empregar nuances e sutilezas que destaquem seu novo trabalho. Claro, o ator nada tem a ver em aparência com o real Barry Seal, mas como foi visto nas cinebiografias Jobs e Steve Jobs, semelhança visual pode ser uma armadilha se colocada acima de capacidade dramática.
O restante do elenco também não faz feio. Temos Domhnall Gleeson como o agente que recruta Seal para sua operação, Jesse Plemons como um policial na cidadezinha de Mena e uma série de pequenas participações que, apesar de breves, são expressivas. Um inesperado destaque é o círculo de Medellin, que conta com os ótimos Mauricio Mejía e Alejandro Edda como Escobar e Ochoa, respectivamente. Mejía, em especial, impressiona na semelhança com Escobar. O elo fraco do elenco fica, frustrantemente, com o peculiar Jacob Landry Jones, excessivamente caricato como o encrenqueiro JB.
A maior estrela aqui, além de Cruise, é César Charlone, diretor de fotografia uruguaio que vive no Brasil e foi responsável por grandes trabalhos como Cidade de Deus e O Jardineiro Fiel (só o primeiro já seria o bastante para atestar sua genialidade). Com uma cara vintage e coloração berrante, Charlone entrega imagens vivas e bastante orgânicas, acertando ainda no uso de câmera na mão, conferindo um despojo que condiz com o tom do longa e sua recriação de época. A montagem de Saar Klein, Andrew Mondshein e Dylan Tichenor, por sua vez, é extremamente divertida em seu uso de truques que datam do cinema 70s, às vezes gritantemente toscos e por isso mesmo regados de personalidade.
Como já dá pra perceber, Feito na América celebra sua própria estética nostálgica. Isso, contudo, acaba encontrando um ponto baixo na trilha de Christophe Beck, que é no máximo genérica em suas guitarras e baterias. A trilha licenciada também deixa a desejar, apostando em faixas que a esse ponto são praticamente manjadas. Não precisamos escutar A Fifth of Beethoven de Walter Murphy para identificarmos o período de tempo da história, nem You Sexy Thing de Hot Chocolate para constatar que Barry e Lucy estão transando muito. A obviedade piora quando tais músicas já foram tão usadas antes, em filmes similares. Felizmente, a veracidade de todo o resto combate a sensação de faz-de-conta trazida pela trilha (algo que pesou mais na decepcionante cinebiografia Punhos de Sangue).
Assumindo um tom (tss) sarcástico e criticando de maneira lúdica o intervencionismo norte-americano em questões estrangeiras, Feito na América nos faz enxergar seu título de outra maneira ao rolar dos créditos. “Digam ‘não’ às drogas”, expressa a primeira-dama Nancy Reagan em certo momento do filme (um que os espectadores de Narcos irão reconhecer de prontidão). Para este ótimo retorno à forma para Tom Cruise, no entanto, preparem-se para dizer um ressoante ‘sim’.