Crítica: Hereditário

Crítica: Hereditário

Aclamado filme de terror psicológico cria atmosfera tenebrosa com cenas sufocantes a todo momento

Ari Aster é definitivamente um nome para se observar. O diretor, que já dirigiu e roteirizou alguns curtas-metragens, traz em sua estreia na direção de um longa uma mistura eficiente de terror psicológico, suspense e drama. Em Hereditário vemos uma condução da tensão familiar entre os personagens que alimenta diretamente a construção do terror psicológico – ocasionado tanto pelo histórico de doenças mentais da família quanto pelo próprio desenrolar dos eventos. O clima angustiante do filme faz o espectador antecipar tragédias, suspeitar do sobrenatural e se sentir desconfortável praticamente durante 127 minutos. A produtora e distribuidora independente A24, responsável por ótimas obras de terror/suspense feitas com baixo orçamento como A Bruxa (2015), The Monster (2016), The Blackcoat’s Daughter (2017), Ao Cair da Noite (2017) e A Ghost Story (2017), parece ter acertado mais uma vez.

Após a morte da avó, a família Graham começa a desvendar algumas coisas. Mesmo após a partida da matriarca, ela permanece como se fosse uma sombra sobre a família, especialmente sobre a solitária neta adolescente, Charlie (Milly Shapiro), por quem ela sempre manteve uma fascinação não usual. Com um crescente terror tomando conta da casa, a família explora lugares mais escuros para escapar do infeliz destino que herdou. Além de Charlie, a família é composta por seu recluso irmão Peter (Alex Wolff), sua complicada e instável mãe Annie (Toni Collette) e seu cético e preocupado pai Steve (Gabriel Byrne). Contrapondo os acontecimentos possivelmente sobrenaturais da narrativa, o roteiro opta por plantar dúvidas do que pode ser fruto de problemas mentais e do que realmente é uma ameaça demoníaca. Com isso, ele elabora a relação conturbada entre Annie e Peter, sendo intermediada pela presença de Steve, que se mostra um personagem descartável na trama.

O que mais chama atenção (porém não o melhor elemento) em Hereditário é claramente seu roteiro intrincado, de ritmo arrastado (pelo menos até o fim do segundo ato). Esse tipo de enredo agrada a muitos, enquanto desilude outros. Particularmente, o desenvolvimento gradativo do suspense por meio do terror em cima da relação entre as pessoas me agrada muito (apesar de nesse filme ter identificado algumas cenas desnecessárias). É o caso do interessantíssimo The Invitation (2015) e do já citado A Bruxa (2016). Ambos possuem uma semelhança na forma como estruturam o tema do terror e o ato de aterrorizar sua plateia.

Sem o uso de jump scares, monstros medonhos e clichês baratos, esse tipo de filme tem ganhado cada vez mais espaço nas salas de cinema e agradado muito os fãs de um formato de terror diferente, ousado e controverso. Normalmente esse perfil tende a possuir problemas gravíssimos com o marketing e a venda de suas propostas. Hereditário não foge desse conflito. O filme foi vendido como o terror mais assustador dos últimos tempos, quando na verdade o que ele menos traz são sustos. O filme se encaixa muito mais em um suspense psicológico inquietante que se apoia no drama familiar de personagens complexos. Portanto, as expectativas podem ter um papel decisivo no gosto final do público.

Durante o filme, temos a sensação de que a família e seus integrantes são observados e controlados por uma força maior. Algo que detém um poder imensurável e objetivos até então desconhecidos. Essa ideia se reforça quando nos remetemos ao primeiro plano do filme (lenta aproximação da câmera na casa da família em miniatura), colocando o espectador na visão dessa possível “entidade”. Ao criar metáforas e simbolismos que aguçam nossa curiosidade, o roteiro de Ari Aster acerta em cheio, mas peca ao tentar incluir alguns infelizes momentos cômicos nos diálogos dos personagens – algo que realmente traz graça, mas o problema é que essa graça atrapalha gravemente a imersão do público dentro do que é proposto pela história principal e pelas cenas em si.

Felizmente, Ari Aster recupera todo o timing desperdiçado pelas tentativas de humor por meio de uma direção completamente responsável e singular. Sua visão original extrapola para os exímios aspectos técnicos, o que realmente fazem de Hereditário tão especial. É preciso dar muito valor aos movimentos fluidos de câmera, cenários com iluminação baixa e pontual, à montagem que valoriza a importância da duração dos planos frente a uma densa escuridão e a possibilidade de deixar a plateia tensa, e ótimas atuações – principalmente a presença visceral de Toni Collette em cena, que realmente supera todas expectativas.

Além de tudo isso, as maiores qualidade da obra são a direção de arte e a trilha sonora. O que realmente propõe o mergulho do público na atmosfera apavorante e trágica do filme são as onipresentes musicas compostas por Colin Stetson, que levam um caráter agonizante e alarmante aos ouvidos do público, e também a elaboração de cenários em cima de uma paleta específica de cores rústicas em objetos variados, incluindo a forte presença da cor preta que nos remete a uma perspectiva depressiva, sem cor, sem alma.

De segundo plano, notamos críticas ardentes ao que herdamos de nossos pais e de nossas convivências em geral: a capacidade afetiva e destrutiva existente em uma criação, os ensinamentos que passamos para nossos filhos e a maneira como os tratamos. O filme coloca o espectador na visão de todos os personagens, buscando uma imparcialidade que só é ressaltada pela ótima caracterização dos defeitos dos mesmos, evidenciando suas imperfeições. O que com certeza ajuda é a interpretação dos atores. Não somente Collette brilha aqui; Alex Wolff (que ao meu ver se mostra bem mais talentoso que seu irmão mais velho Nat Wolff) e Milly Shapiro estão absolutamente incríveis em papéis consistentes.

Como já dito sobre o marketing, minha experiência diante da telona aponta o fato de que fui ao cinema esperando um filme e me deparei com outro. Pois bem, tanto o filme que eu tinha em mente quanto o que realmente se apresentou a mim foram altamente satisfatórios – e pude saciar minha fome de filmes de terror psicológicos, inovadores e profundos. Para mim, Hereditário não é recomendado a todos os públicos, mas sim aos que apreciam um processo lento de situações torturantes capazes de embrulhar os estômagos de alguns. Um filme forte gráfica e tematicamente. Feito para ser visto nas entrelinhas, nos espaços vazios e escuros, e interpretado livremente segundo as crenças e vontade de cada um.

FICHA TÉCNICA
Direção e Roteiro: Ari Aster
Elenco: Toni Collette, Alex Wolff, Milly Shapiro, Gabriel Byrne, Ann Dowd
Produção: Kevin Frakes, Lars Knudsen, Buddy Patrick
Fotografia: Pawel Pogorzelski
Música: Colin Stetson
Montagem: Jennifer Lame, Lucian Johnston
Gênero:
Terror / Drama
Duração: 127 min.

João Pedro Accinelli

Amante do cinema desde a infância, encontrou sua paixão pelo horror durante a adolescência e até hoje se considera um aventureiro dos subgêneros. Formado em Cinema e Audiovisual, é idealizador do CurtaBR e co-fundador da 2Copos Produções. Redator do Cinematecando desde 2016, e do RdM desde 2019.